1. Que me conste, no primeiro Natal foram ao presépio — além de José e da Mãe sempre virgem — algumas personagens; a saber: os anjos mensageiros de Deus, e os pobres pastores. Também por lá se encontrava o burrico de José e a vaquinha que não sei donde viera. É bem possível que os pastores tenham trazido, além de queijo e leite, alguma galinha, um cordeirinho e uma cabrita. E como, entretanto, a notícia se tornou sabida, por certo que apareceram alguns dos habitantes de Belém. José tinha familiares por ali — pobres todos, claro! —, e é possível que até algum estrangeiro tenha também vindo.
2. Neste ano de 2022 também eu vou fazer, mais uma vez, o meu presépio; mas não irei dar trabalho a José. Eu próprio vou alargar um pouco mais o espacinho no meu coração, vou alimpá-lo pelo melhor que eu puder, renovar a palha, compor a cancela e chamar uma estrela maior.
José e Maria é óbvio que lá estarão; Maria, a descansar; José, com o Menino ao colo, ora sorri, ora chora, e chama-lhe baixinho: «Meu Filho, meu Filho, e meu Salvador».
O burrico também lá estará que, não tarda, a Família terá de fugir antes que prendam os Pais e matem o Menino. José descansará pouco, dormirá de quando em quando, aos sobressaltos, com um olho aberto e outro fechado. Maria não sei se dormirá, que além de si tem de cuidar do Filho, amamentá-l’O, procurar perceber por que agora chora, e ali, e além, e depois, e de olhar por José. A vaquinha não faltará, claro, e não sei bem com quem ficará, quando a Família tiver de fugir. Além da galinha haverá também um galo, porque aquela gruta é uma nova Arca de Noé; e as cabritinhas são agora três – uma das quais, é cabrito, sim –; um par de coelhos, um pequeno bando de pardais que vêm chilrear, e uma colónia de morcegos que já ali vivia antes do advento.
3. Além destas colocarei novas figuras, como sempre faço em cada ano; não é um renovo, é um jeito de dizer que, ainda hoje, os pobres e os enjeitados, continuam a ser os primeiros a achegar-se e a avistar o Mistério.
Estas são as (novas) figuras que, este ano, colocarei no presépio:
4. Colocarei um sorridente casal de velhinhos, p’raí com sessenta anos de casados: Flávia e Domingos que, algures nos dias do pino do calor, vieram sozinhos ao Carmo – sozinhos, não, acompanhados por duas muletas cada um! – para celebrar o aniversário do seu matrimónio. Têm filhos, mas não vieram os filhos; têm netos, mas não vieram os netos; têm uma abada de bisnetos, e não veio algum: «Senhor Padre, temo-nos a nós, e sorrimo-nos um para o outro. E por agora isso nos basta!».
5. Ajuntarei uma velhinha nas redondezas daqueles dois velhotes encantadores. Disse-me ela (algo parecido ao que eles um dia me haviam dito): «Senhor Padre, ouça-me, por favor! Gosto muito do Fradinho São João! Porque ele é nosso, que também os pobres merecemos ter alguém por nós! Quando tenho de pedir algo a Deus faço-o por ele, através dele. Venho aqui e peço-lhe, mas peço-lhe a chorar, que se de algo precisamos, tem de ser a chorar, que é a chorar que se fazem os pedidos ao céu! E ele concedemos»! Quem assim confia no céu, eu terei de pô-lo junto da manjedoira do Menino Jesus, porque ninguém pode estar perto Dele e Dele ter medo!
6. Irei colocar alhures – não, não terá lugar certo, não, antes perambulará por ali – um atolambado que, um dia destes, me apareceu pela igreja como um furacão: não houve porta que lhe fizesse frente, e a que lho fez, quase a deitou a baixo. Felizmente era rija. Talvez estivesse descompensado, que eu agora vejo-o muitas vezes, ajoelhado, sereno e calmo, em recolhimento, diante do Santíssimo Sacramento. Sim, junto das ovelhinhas mansas irei colocar este cordeirinho que, desabrido e aos pinotes me entrou pelo altar, e depois virou sereno adorador de Jesus, em espírito e verdade.
7. Colocarei ainda um peregrino com quatro cachecóis ao pescoço. (Achegou-se-me aqui nos dias ásperos da covide e, acho, que ainda o não pus a cirandar pelos caminhos do presépio). Disse-se-me peregrino, mas deveria ser exagero, que os peregrinos só carregam o essencial. Disse-se-me polaco, mas os cachecóis – todos desportivos – eram de clubes alemães. Era peregrino, e ficou mais de seis horas a rezar na igreja; ora quem reza seis horas seguidas aceita ficar, pela certa, no presépio, quantos dias seja necessário, para nos dizer que se nos pomos a procurar pelo caminho, muito mais Deus vem por ele para nos achar.
8. E vou colocar um brasileiro vestido de t-shirt em pleno inverno; veio para Portugal para trabalhar, mas gosta mais de rezar. Ora, trabalho é trabalho, e oração, oração. Não se podem trocar os tempos. Nem os modos. Pode-se andar com o pensamento em Deus enquanto se trabalha, não se pode trabalhar durante a hora de rezar. A este brasileiro de bigodaça grande como a de um turco vou colocá-lo no meu presépio porque, para mim, ele é símbolo dos buscadores de Deus em lugar errado; claro que Deus está em toda a parte, mas em toda a parte, até no Brasil, Ele também há-de ser achado e adorado, depois de lavarmos as mãos e os braços, em pós o cansaço do trabalho diário.
9. E vou colocar Francisco, que todos os dias veio ao Carmo, sem se cansar, até depois dos 90 anos. Tinha-o prometido a Nossa Senhora e cumpriu: veio aqui até cair exausto, junto à porta da entrada da igreja, roído por um cancro. Quem assim quer entrar no céu da terra, merece entrar no presépio, e subir ao céu.
10. No meu presépio de 2022 estes todos merecem entrar, que a ninguém o Menino dali espanta! Pode que nenhum deles tenha limpo as mãos, ou tomado banho no último mês. Mas todos são de coração puro e são, como nesgas de sol raiando por entre nevoeiro. Guarda-os, Menino Jesus, junto do bafinho da tua boca.
Ámen. Ámen.
Frei João Costa
.carmo | nº 220 | dezembro 18 2022