Ponto Carmo

Como rezar Missa neste Domingo?

1. Confesso, não nego: por estes dias subo a custo ao altar. Subo por obrigação; subo porque prometi ao bispo ali subir todos os dias; subo porque sei que aquela fonte de graça não pode nunca deixar de correr e derramar-se, e que por mais que se derrame nunca se esvai; subo porque o Senhor prometeu estar todos os dias connosco: todos os dias é também nos dias maus, duros, difíceis, depressivos, de vergonha, indignidade e vilipêndio; subo porque todos os dias a minha mãe, cansada ou não, feliz ou desanimada, me pôs a mesa, me animou a comer, me fortaleceu, me ajudou a crescer; porque todos os dias alguém depois de um pequenino diálogo em que me responde «Ámen»,  abertas me estende as mãos famintas, trémulas, peregrinas, quando não, exangues…

2. Digo a verdade, não minto. Ao longo desta semana (12-18.02) que não quero esquecer, que não posso esquecer, que não poderemos jamais esquecer, vexado, muito me custou revestir-me de alva, estola e casula, e rezar missa.
(É certo que a sorte me fez calhar rezar num mosteiro, a recato, mas ainda assim… custou!)
A cada dois passos que dava rumo ao altar perguntava-me: como se reza, como se pode rezar depois do Relatório Final? Como posso rezar?
(Na quinta-feira cruzo-me com um pároco e exponho-lhe o meu desassossego, a humilhação de que comungo e me fere, me esmurra e me perturba por causa de tanta dor, de tanto silêncio cobarde, tanto crime, tanta insensatez, tanta palavra que quer sair e não me sai para nomear algo que de momento me é inominável. Pergunto-lhe. Responde-me: «Nem tempo tive para pensar nisso. Esta semana celebrei todos dias quatro missas: duas de agenda, e dois funerais em cada dia. Não me pude dar ao luxo de pensar! Tive de substituir colegas, de ir à luta; reuniões, reuniões. Nem pensei…».
Ainda fiquei pior com a resposta, mais negro, mais inseguro. Perguntei aos meus, mas eles choram como eu a violência, o abuso, a vergonha.

3. E é assim que me sento frente a esta alva folha de papel. É assim que celebro dia em pós dia, uma missa, tão só uma, uma missa de reparação e de justiça, e de confiança no perdão e na misericórdia, apesar de também Deus ter sido violado em cada menino, em cada menina!
Sim, houve crianças violadas, não nego, não podemos negar, não queremos ignorar. Tinham nomes, vidas a florir, pais e avós que confiavam, irmãos, amigos. Não podemos negar, não podemos esquecer. Não podemos negar.
Não podemos negar a tragédia, o ultraje!
Que horror e que sufoco tanto sofrimento imerecido, tanto futuro truncado, tanta consciência humilhada, tanto sem-sentido! Tanto…
Não sei que diga, não sei bem o que digo. Olho para um lado, olho para outro, olho para dentro de mim, hesito buscar livros em busca de uma balança que sopese palavras como: «confiança», «alegria», «meninice», «amor», «ternura», «amigo», «crescer», «vida», «Jesus», «catequese», «Missa»…

4. É óbvio que rezo pelas vítimas, pelos meninos, pelas famílias, por mim que sou vítima, por nós que somos vítimas, pelos abusadores que o são também – ok, aceito que discordem… – pela Igreja, por Francisco, pelas famílias, pela sociedade…
(Estou com falta de fé!) Rezo e não sei se nisto Deus me ouve, se me compreende, se me acha digno de eu lhe rezar – mas tens de ouvir-me, meu Deus, tens de ouvir-me, rezo-lhe –; é que não sei como se diz às vítimas (não, não penso agora em mim…) que Deus as ouve e as atende, quando foram precisamente os Seus mais lustrosos servos que mais indignos delas e d’Ele se mostraram!

5. É óbvio que este texto não fala de mim, mas da perplexidade de toda a comunidade católica que se viu enxovalhada, humilhada pela violência e pela indignidade dos seus clérigos, e sob o estrépito escarninho dos seus inimigos – e não digo ou nego que não tenham razão!

6. Como fazer? Como levantar-nos? Para onde erguer o olhar? Onde pousar a cabeça, onde sossegar o coração?
Peço lágrimas, oro por lágrimas; das que se veem por fora, que as de sangue jorram-nos pelo esfacelado do lado de dentro. Lave-se-nos a alma com água e com sangue, sangue do nosso, água dos nossos olhos. E não bastará. Não bastará.

7. Ouvi dizer que querem erguer um monumento às vítimas, que perpetue a nossa vergonha. Não sei se é verdade, se li bem; e até pode ser que faça sentido. Será mais um para apodrecer, mas enquanto de todo não caia, não serei eu a lamentar um dedo que nos aponte o vilipêndio, nos recorde os crimes e os vexames. Não o lamentarei jamais…

8. Quarta-feira iniciaremos a Quaresma. Nesta hora em que a iniquidade se multiplica e medra em terreiro que deveria ser jardim e paraíso, ajoelho-me e humilho-me porque o amor parece ter esfriado, e oro em prece confusa e sem palavras, para que ele jamais se apague do coração de Deus; para que nos queime e nos purifique, e nos dê novas ocasiões para recomeçarmos a amar como convém. A servir como convém. A sarar como convém.
Sim, sem medo, também eu enfarruscarei a cabeça de cinza, sinalizarei o opróbrio em plena igreja, comerei pão de cinza e beberei do cálice das lágrimas; que outro caminho para já não vejo. Não vejo, porque feridas de tantas vítimas dos abusos de sacerdotes me fere, nos fere a todos, e por isso choro a tristeza e a dor do meu povo ferido.

9. Abaixa-nos, pois, e abate-nos, Senhor, e faz-nos entrar na Quaresma pelo pórtico da cinza, e seguir o caminho da penitência e da oração; como eu gostaria de saber pedir-te o bálsamo que unge e cura as feridas do corpo e da alma do teu povo…

Frei João Costa
.carmo | nº 229 | Fevereiro 19 2023