1. Hoje, domingo, é dia do pai. Não há filho ou filha que não celebre o pai neste dia! Muitos, porém, o evocam sem mais, sem jamais lembrar esse homem único, de mãos calejadas, fortes e mansas, coração grande e valente, cuja paternidade acolheu e educou a Deus, O teve nos braços e O elevou sobre os ombros, O ensinou a rezar e a ser homem. Que homem não foi José! E quão grandes são os homens que perscrutam os sonhos dos filhos para os fazer maiores que eles! Na casa de Nazaré havia um Menino único que era Deus, uma mulher única que era Mãe de Deus, e um homem único que amou e serviu a ambos!
2. A casa de Nazaré era uma casa banal como as demais do lugarejo. Não se distinguia por nenhuma particularidade em especial. Não era tão bela como sugere a singeleza da de Loreto, nem tão elaborada como aquelas pequenas paredes de pedra e argamassa como na mesma se podem apreciar.
Não, algo me diz que a casa onde Jesus cresceu, e sobre a qual existiu a Igreja da Nutrição — assim chamada por a tradição afirmar ali ter sido criado o Salvador que, à vista de todos, ali cresceu em estatura, sabedoria e graça — é uma casa que se confunde com a paisagem.
Não, a casa de Maria, José e Jesus parece-me ter outras feições que, isso sim, isso tenho por certo, a casa sai ao dono. Como então acho eu, ter ela sido? Bem, parece-me ter sido uma casa firmada na rocha, ou então não sei como ler o capítulo sete do Evangelho de São Mateus: «Caiu a chuva, vieram as torrentes e sopraram os ventos contra aquela casa; mas ela não caiu, porque estava fundada sobre a rocha…». Claramente eu entendo que Jesus fala do que viu e viveu: a casa onde cresceu e aprendeu a ser carpinteiro estava firmada sobre a rocha!
(É certo que aquela casinha pequenina cujas paredes são de muitas pedrinhas e rebos, bem alinhados e aparelhados por argamassa é uma ideia que me seduz. Imaginem: argamassa dando cola e união à diferença de muitos; muitos é mesmo muitos, onde ninguém é igual a ninguém e todos contribuem para a solidez do edifício que se mantém de pé, devido não tanto à força da união de todos, mas às virtudes da argamassa que os une!)
Eu percebo Loreto, mas prefiro a ideia tosca da casa de Nazaré escavada e assente na rocha.
Na sua crua bruteza ela condiz com a kénose do Filho de Deus. Na sua materialidade agreste aproxima-se quase a uma lura de bichos – ah, e isso fala-me, sim, da humildade e humilhação a que o Salvador se sujeitou! É uma casa calcária com o seu quê de rijo e inabalável; digo, de calcário, e quero dizer parcialmente escavada na rocha calcária, e que onde as calcárias paredes terminam, continuam elas subindo feitas de pedras e argamassa – ora cá está ela, e ainda bem! A casa está num cabeço pelo que apresenta ainda um aspecto fresco, arejado e avarandado. Foi nessa casa fofa, e para todos os efeitos, áspera, que Jesus cresceu.
Se ali ao lado havia um curralito para duas cabras? Sim, acredito que sim. E do outro lado da casa estou a ver um cabanel. E o que é um cabanel, direis? É uma coisa que a quase nada chega. Não é celeiro, que para tanto não dá. Não é adega, que por ali nada pinga. Não é oficina nem carpintaria. É o lugar das coisas de José. Se à casa preside Maria, ao cabanel, José. Não é um eremitério; é onde ele, de sol a sol, fabrica as horas martelando madeira, umas vezes, cozendo uns adobes, outras. Pensando bem, é um eremitério, sim; é arrumado, é aprumado, discreto, silencioso, circunspecto, pacífico, aberto, quente no verão, frio no inverno, e tem Jesus por ali, ora a cirandar, ora a descobrir mundo; ora achega-me isso, ora traz-me aquilo; por largos meses, nas ausências circunstanciais da mãe, por ali dormiu numa espécie de berço que José, botando mão a madeira de segunda, aparelhou; ali o pai lhe afeiçoou e bruniu a alma, as mãos, as pernas e os músculos, o olhar — e como quão bem lhe advieram os longos, generosos e fortes braços do filho, quando, a seu tempo, eles despontaram.
Não consta que o laborioso José fosse de afogadilho; se houvesse de o ser, pois sê-lo-ia, mas Nazaré não dava para muito, a clientela era toda pobre e muitas coisas se resolviam por chegas e tornas, e por môr de uma malga de feijões ou, quem sabe, uma pele de cabra curtida. E além disso, O Carpinteiro, como às vezes o chamavam, tem o seu quê de taciturno sem ser um zangão, razão pela qual muitos tomando-o pelo insólito silêncio e os modos gentis, muito dele se mofam.
Pese embora o silêncio do eremita, passados séculos, tantos ainda o miram como bitola dos que se sabem mais que músculo e suor, e livres se adentram nas lides do autoconhecimento e da meditação.
O perfil avarandado da casa alarga-se ao cabanel, onde ele trabalha, e donde, sereno, assiste ao lento girar da roda do dia, até que as suaves sombras tombem seus grandes véus sobre o vale. Então o trabalhador, fiel como o irmão sineiro de um mosteiro, arruma um a um, do pequeno para o maior, os instrumentos do ofício; as pranchas, as tábuas e as ripas constam todas em seu lugar, cada uma aparelhada em sua tribo. E quando do Carmelo ao Jordão já todos os campos de pão dormem em Israel, quando sobre a terra já toda a luz repousa em sossego, e ele já não mais pode ler, com um grande suspiro, deitado o filho em seu regaço, começa a conversar com Deus.
Na cozinha rude, um pouco ao lado da lareira ardente, acaba a diligente Maria de colocar as escudelas sob a tosca mesa de madeira negra, junto a duas fatias de pão escuro, uma vela luzente e uma jarra de fresca água pura, sem jamais censurar o silêncio do vento, nem o sereno cicio da paz que da oficina lhe chega.
Então, devagarinho como um anjo de asas levezinhas, desde a soleira, muito temendo ferir o santo diálogo entre os dois Pais, chama-o baixinho: José, José, amor do meu coração, vem que são horas! Vem, demos, juntos, as graças por este dia! Vem jantar! Traz o nosso Menino, que Deus abençoa o teu suor e o temor do teu coração!
Frei João Costa
.carmo | nº 233 | março 19 2023