1. A meio do ano de 1542, e igualmente em meio duma terrível crise sócio-económica iniciada nos ressequidos campos de Castela que, pronto, dizimou os pobres pela fome, nasceu em Espanha um menino. Deram-lhe o nome de João, talvez por ter nascido a 24 de junho – o mês é certo, tal como era certo baptizar os nascituros com o nome do santo do dia –. A terra de nascimento – Fontiveros, província de Ávila, em Castela – era pobre; a mãe, tecedeira, era pobre; o pai era rico, nobre, mas deserdado comerciante de tecidos. Conheceram-se, ela ao tear em casa de uma patroa, ele visitando os teares do lugarejo e encantando-se com a tecedeira mais bela. Contra as convenções do tempo o nobre comerciante casou com a plebeia; não por conveniência, mas por amor. Viverá de amor, trabalhará ao lado do tear da mulher e, depois do nascimento de Joãozinho, morrerá de fome. Luis, o segundo filho, também.
2. Desde a mais tenra infância Joãozinho conhecerá a bom conhecer duas coisas: o amor e a fome – é filho dos dois… A viúva, desamparada do amor e dos braços fortes do marido, pronto iniciará uma peregrinação de fome buscando futuro para os dois rebentos que lhe restam: Francisco, o mais velho, Joãozinho, o mais novo. Acrescentemos, portanto, outro item ao elenco: além da fome, desde cedo Joãozinho conhecerá a força indomável do amor, e a necessidade de andar e buscar para sobreviver. Sim, em toda a sua vida, João de Yepes, será um buscador e um arauto do amor!
3. No dia 24 de agosto de 1562 a Madre Teresa de Jesus fundou, em Ávila, sua cidade, o primeiro mosteiro feminino do Carmelo Descalço. Seis anos mais tarde, no dia 28 de novembro de 1568, a mesma Madre, juntamente com João de Yepes, agora frei João da Cruz, fundaram em Duruelo, a cerca de quarenta quilómetros de Ávila, o primeiro convento masculino do Carmo Descalço. João e Teresa haviam-se conhecido um ano antes, no verão, quando ele descera da Universidade de Salamanca à vila de Medina, onde vivia sua mãe, para ali celebrar Missa Nova. Pronto a Madre quis conhecê-lo em vista da primeira fundação que haveria de fazer-se, e se fez, em Duruelo, e conheceu-o: tinha ela mais 27 anos que ele! Era ela nobre, mui experimentada e santa e com carisma fundacional, era ele novato e santo. Porém, no parecer dela, gigante aos olhos de Deus, por mais que fosse pequeno e discreto aos dos do mundo. Além de santo pareceu-lhe sábio – «o meu Senequita», era o modo carinhoso com ela sempre se lhe referia; ou então: «O Padre da minha alma!». E era-o. Quando as contingências os separaram, nunca mais a grande Teresa que encantava Espanha encontrou outro como ele em reino algum, nem tão santo nem tão sábio, nem tão capaz de encaminhar alguém para Deus, pelos caminhos de Deus!
4. Frei João era reservado e modesto, e com um dom único: capaz de passar desapercebido sem que alguém desse algo por ele… Só um outro rivalizava com aquele traço de personalidade: jamais se incomodava se o desprezassem. Era, além disso, segundo testemunham os que o conheceram, dotado de uma sensibilidade artística incomum, vivaz, de uma grande inteligência e de uma capacidade de amar também ela ímpar. Ardia-lhe no coração tão intenso amor que, só pela força de tal fogueira, alcançou ultrapassar todos os sofrimentos, injúrias e malquereres por que passou ao longo dos seus 49 apressados anos de vida. (Morreu em Úbeda, província de Jaén, em Andaluzia, emmeio da noite de 13 para 14 de dezembro de 1591).
5. Como se disse, nasceu pobre, viveu pobre e pobre morreu. Era materialmente e espiritualmente pobre. Viveu num contexto social em convulsão como uma panela a ferver, porquanto era o tempo em que tanto Castela como Portugal se haviam lançado, intrépidos e audazes, oceano fora à procura de descobrir o Novo Mundo. E sim, galgando e desafiando o desconhecido mar descobriram e deram novos mundos ao mundo, como disse um dos nossos!
João da Cruz, o tal freizinho pequenito, de todos ignorado, e irrenunciavelmente arrimado ao conhecimento das Escrituras e à força do amor, adentrou-se pela abissal exploração sem fundo do mistério de Deus. Sim, deveríamos orgulhar-nos de sermos filhos e filhas de tal explorador do infinito! Felizes somos por provirmos de um homem, «celestial e divino» que, ainda hoje, sabe levar-nos pelas regiões sem trilhos! Adentrar-se por tais imensidões é, pois, a maior aventura pessoal de qualquer um de nós – que é como quem diz, a de apostar na perfeita união com Deus na Chama Viva de Amor. De facto, não há nem maior (nem o sempre novo) objectivo para a vida de cada um de nós.
6. De outro João, aliás, cujos escritos conhece este de memória, percebeu ele tal intuição. Escreveu o Evangelista: «O que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele» (4:16). O amor, sempre o amor. Sendo que o amor, dirá João da Cruz, é despojar-se de ninharias, isto é, «de tudo o que não é Deus, visto que quem saboreia ninharias não pode deleitar-se em Deus». E também é sofrer por Ele – tal é a grandeza de São João da Cruz, nosso pai, que celebramos todos os dias 14 de dezembro! De facto, ninguém como ele sabe (e assim nos deseja conduzir) que Deus e o homem gravitam um em torno ao outro, e estão destinados ambos à união e à alegria de quem vive «em igualdade de amor»!
Não, Deus não nos criou nem para sermos reles, nem anões, nem medíocres, mas gigantes no amor e capazes de O amarmos como só Ele merece ser amado! A plenitude do amor é, pois, nosso destino. Uma plenitude na qual somos maiores que nós mesmos, fazendo e sendo capazes de cumprir o nosso fito principal: viver em igualdade de amor a Deus, esse Deus-Amor que não menoriza nem diminui o homem, antes o ama, o alevanta e eleva a uma imerecida dignidade inimaginável!
7. Nótula final: no dia da Imaculada o Joãozito Pombal, miúdo curioso de 9 anos, passou aqui pelo Carmo e quis conhecer o convento. Passou por aqui e por ali, por corredores, salas e locutórios. Pensava eu que ia aborrecido, ou até distraído, pois este não é de todo o seu mundo; mas não, o reguila ia atento como se verá. Disse-me ele ao despedir-se: «Como é que tu só tens imagens nas paredes de pessoas que eu não conheço? Devias ter um quadro grande de D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal! Esse sim, eu conheço!».
Pois é, João, nas paredes do Carmo estão os que desconheces e não aquele que conheces, porque nunca é demais trazer para dentro do conhecimento dos meninos os aventureiros como São João da Cruz que nos dão a possibilidade de conhecer as imensas imensidões sem trilhos até ao interior mais profundo da alma!
Obrigado, João, pelos teus desafios!
Frei João Costa
.carmo | nº 259 | dezembro 10 2023