Ponto Carmo

Se um cai, outro se levanta

1. O texto evangélico deste domingo II do Tempo Comum (Marcos 1:14-20) aponta-nos o início da missão de Jesus, ao dizer: «Depois de João [Baptista] ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a proclamar o Evangelho de Deus». Obviamente esta declaração tem de ser levada em conta por nós, pois quando um cai e outro se levanta.

2. Sem querer desviar-me desta passagem do Evangelho dou um salto, assim ele me seja permitido. É que a queda de João – mandado encarcerar por Herodes – e o pronto surgimento de Jesus que assim inicia a sua missão, fez-me lembrar o filme A Missão (Roland Joffé, 1986). Na verdade, talvez seja melhor dizer que é o filme que se inspira naquela viragem de página evangélica: do fim da missão de João para o início da missão de Jesus. Vamos ao filme.

Se bem me lembro ele passa-se na belíssima região da tribo dos Guaranis, cujas terras incluem as Cataratas do Iguaçu – algures na fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. O início do filme é terrível (e ao mesmo tempo, esperançador).  Aos poucos segundos percebemos um homem em tronco nu, atado a uma cruz de pau, sendo apressadamente transportado por índios floresta fora.  Ao chegarem ao termo da floresta aqueles atiram a cruz – e o homem, um missionário sabê-lo-emos depois!… – a um lago. Veremos depois a cruz descendo em vertigem os rápidos de um braço de rio, que mais se acelera até que caia pelas cataratas e o missionário morra mártir.
(Se não tivéssemos mais informação sobre as razões do sucedido, bastaria aquele punhado de segundos para nos mergulhar na história que o filme quer contar.)
Depois da tragédia – sendo-o, um martírio sempre é uma fonte que rebenta para dar vida… – irrompe a esperança. Isto é, logo logo avistamos três homens, afinal, também eles missionários, subindo a custo uma colina; e à medida que mais sobem, mais crescem, até que percebermos que estão a chegar ao local do martírio, e que um deles vem para o substituir. (É aqui que eu digo que o filme se inspira na passagem evangélica em que Marcos nos informa que, tendo caído João, Jesus começa o seu trabalho.
(Só mais uma chamada de atenção para um certo contraste ali evidenciado: se a cruz cai em vertigem cataratas abaixo, o missionário que advém sobe mui dificultosamente e arriscadissimamente a altíssima parede que o levará à presença dos mesmos índios que, ocultos na vegetação, o recebem com setas apontadas ao coração!)

3. É preciso ter-se no coração uma dura pedra surda e cega para não se chorar com o filme. Aliás, ainda hoje me surpreende aquele início que em poucos segundos nos resume o andar da história da nossa fé: cai João, ergue-se Jesus. Cai Jesus, caminham os Apóstolos. Caem os Apóstolos um a um, seguem-se os primeiros cristãos. E depois destes, uma segunda geração. E depois desta, outra, e uma outra, e outra até nós. Morre um santo aqui, algum nascerá do outro lado da montanha. Soçobra um modo de evangelizar, outro arrebita. Calam aqui uma voz, além outra irrompe. Rompem-se uns odres, algures outros se cosem. Cai um missionário, outro se alevanta. E assim, sucessivamente, repetidamente, até ao fim da história.

4. Volto ao filme: e não é que aquele segundo missionário vem para o lugar onde morrera o primeiro? E não é que um jesuíta vindo do longínquo continente europeu, se apressa a subir o Iguaçu para se entregar aos mesmos pobres índios que lhe haviam matado o irmão? E não o vimos nós que, logo, tudo faz e fez para ser por aqueles bem acolhido – e foi! – ao ponto de chegar a ser quem os defenderá dos iníquos exploradores europeus? (E já agora a pergunta que vale o prémio dos prémios: o que move ou faz, senão o amor, com que o segundo substitua o primeiro missionário? Como compreender que, em qualquer tempo ou era, em qualquer região ou cultura, alguém arrisque a própria vida, se não fôr por amor – aliás, do mesmo modo que Jesus o fez?)

5. Amor, amor até ao fim, até ao sangue totalmente entregue, tal é a marca da Igreja de Jesus. Marca de ontem e de hoje, que ainda hoje e sempre, ela será a nossa marca, a ponto de jamais a dispensarmos ou deixarmos que no-la tirarem. E enquanto houver um amor assim, haverá eternidade, haverá Igreja, porque o Reino de Deus não parará, pois não pode parar por sempre estar a caminho; e se não é de uma forma, é de outra.
Sim, tal como Jesus prometeu, o Reino de Deus prolongar-se-á nos seus discípulos. Enquanto houver amor, haverá Igreja, haverá pés a caminho afeitos ao desafio, corações a sofrer e a amar, bocas a falar e a testemunhar, mãos a abençoar. Sim, haverá Igreja até ao fim dos tempos; e se não fôr aqui será além – assim foi, assim tem sido, e assim será. De facto, lugares houve na história em que a fé cristã foi poderosamente pujante, e hoje é ali residual: no Norte de África, na Turquia (foi, aliás, em Antiakia – outrora, Antioquia – que os discípulos de Jesus receberam, pela primeira vez, o nome de cristãos!), e na mesma Terra de Jesus. Sim, o Cristianismo pode morrer aqui, aqui mesmo nesta terra que nós hoje amamos, pisamos e nos medra. Mas que morra aqui não quer dizer que não nasça e floresça acolá, visto que Jesus prometeu que ficaria connosco até ao fim, e ficará.

6. E como sei que assim será? – Porque a Igreja além de humana é também divina! Fora ela unicamente humana e soçobraria, tal como no fim de cada verão cai o altaneiro pendão do milho. Soçobraria, ou vítima dela própria, ou das tiranias e crueldades que a história nos testemunha. Mas não, ela mantém-se e manter-se-á, mui apesar dos seus inimigos que, frequentemente, estão medrando mais dentro dela própria que lá fora!

Frei João Costa
.carmo | nº 265 | janeiro 21 2024