Ponto Carmo

Virão trinta, sessenta ou cem por um?

1. Quarenta dias depois do Natal – a 2 de fevereiro –, a Igreja celebra a Apresentação do Menino ao Senhor. Este acontecimento é narrado por São Lucas no capítulo 2 do seu Evangelho. Num primeiro momento esta festa foi chamada do Encontro, porque Jesus encontra os sacerdotes do templo – e também Simeão e Ana, que representam todo o povo de Deus. Este é também o Dia do Consagrado no qual oramos por todos quantos se ofereceram inteiramente para o serviço de Deus.

2. Existem notícias de que já nas primeiras décadas do Cristianismo existiam homens e mulheres que se abstinham de casar para seguirem a Cristo numa entrega mais plena (Cfr 1Coríntios 7). Foi, porém, a partir do séc. III que o seguimento de Jesus viveu um grande incremento, que ficou a dever-se a S. Antão (251-356) e aos muitos discípulos que decidiram imitá-lo. Por ser em isolamento, o seu estilo de vida (cristã) chamou-se eremitismo e era vivido com imenso zelo e empenho: uma parte do dia era empregue a trabalhar manualmente, em silêncio, outra parte era dedicada à oração, e outra a defender os necessitados e a aconselhar e a guiar os jovens que os consultavam (incluindo mulheres) a respeito da sua ascese.
A vida cenobítica ou comunitária sucedeu à vida eremítica, por promover algumas vantagens: o exercício da caridade e a introdução de disciplina através da aceitação duma Regra de Vida que facilitava o controlo de práticas exóticas ao nível da oração, trabalho, vestuário, alimentação. Neste novo caminho de salvação pontificava um Abade ou Pai, a quem cabia a orientação do mosteiro. A fundação do primeiro coube a São Pacómio, no ano de 320, a 600 km do Cairo. Santo Ambrósio (+397), São Martinho (+397), São Jerónimo (+420) e São Paulino de Nola (+431) encontram-se entre grandes os impulsionadores da vida cenobítica.
No ocidente, depois de S. Agostinho (+430) que recomendava aos seus monges, não apenas oração, mas também trabalho, surgiu São Bento de Núrsia (+547), «o Pai dos monges ocidentais», também ele organizador da vida cenobítica, marcada pela estabilidade no mosteiro e centrada no ora et labora (oração, meditação da Sagrada Escritura e trabalho), organizada para oferecer aos monges mais capazes uma disciplina que os ajudasse no desenvolvimento dos seus dons e que, ao mesmo tempo, não afugentasse os mais fracos.
São Columbano (+615) desenvolveu este mesmo estilo de vida na Irlanda, à qual, universalizando, acrescentou a prática da direcção espiritual.
Depois de um período em que na Europa floresceu a ideia da «maternidade espiritual» como motor da vida consagrada e da evangelização, chegou à Igreja, algures no início do séc. XIII, o espírito Vida Religiosa Mendicante, sustentada em dois princípios: o da sobrevivência pelo trabalho manual e pela humilhação de pedir esmolas (tal como Cristo pobre!); e, se a vida monacal supunha a estabilidade num mosteiro – que deu origem às escolas e universidades, os Mendicantes (séc. XI -XVI) mostraram-se pregadores itinerantes da Palavra de Deus – que fez florescer a fraternidade, a vida laical e o cuidado pelos mais pobres.
Com o Concílio de Trento (1545-1563) a Igreja abriu-se ao apelo da renovação e a Vida Religiosa entrou num novo período da sua história – o chamado período da diaconia que não se apoiava nem no modelo monástico nem no mendicante, mas no serviço da caridade como resposta da Igreja ao caos social, económico e religioso. A partir dali as novas congregações dedicaram-se a responder às necessidades específicas das pessoas: saúde, formação, formação do clero, desvalidos, promoção laical, da criança e da mulher, às missões.

3. Quando, pois, em cada dia 2 de fevereiro, celebramos o Dia do Consagrado é toda esta nuvem de homens e mulheres que lembramos. E tal como agradecemos Jesus consagrado ao Pai, assim lembramos, agradecemos e rezamos por todos os consagrados e consagradas inteiramente autodoados ao Senhor, porque todo o consagrado é no mundo e para o mundo outro Cristo, isto é, alguém plenamente auto-oferecido a Deus. E se todo o consagrado se doa a si mesmo a Deus, também é verdade que ele é um escolhido que Deus chama para Si e assinala para o Seu serviço. Por isso, dois são os modelos assumíveis por todo o consagrado e consagrada – Simeão e Maria.

i) Sabemos por São Lucas que o Santo Velho Simeão vivia no templo de Jerusalém aguardando a chegada da Luz das nações, pois o Espírito Santo lhe prometera que não morreria sem A ver. Por isso, enquanto ali permanecia, dedicava-se à oração, com preces e súplicas, por todo o povo. Ainda hoje e sempre, esse é o ofício dos consagrados: permanecer, piedosos e atentos, no templo do coração para que, advertidos da presença de Deus, saibam reconhecê-l’O e acolhê-l’O nos que sofrem, até mesmo nos que andam longe Dele;

ii) todo o consagrado é outra Maria, e por isso, chamado como Ela a dar o Filho ao mundo, sem jamais O reservar para si e para seu deleite, antes como mãe, O amparar e ajudar a crescer, como Senhor e Luz do mundo.

Estas tarefas confiadas aos consagrados – rezar pelo mundo e levar Deus ao mundo – podem parecer-lhes superiores às suas forças, e sê-lo-ão, mas do que jamais nos poderemos eximir é de ser, neste mundo obscuro, o reflexo da luz que é Jesus, já que só Dele somos mensageiros.

4. Estamos numa era de mudança: morre uma forma hierárquica de Cristianismo e alevantam-se os leigos dando rosto ao sacerdócio comum e ao comum chamamento à santidade. Esta nova fase é, talvez, a de morrer, como o grão de trigo lançado à terra. Que cada um que morra dê, conforme o prometido, ou trinta, ou sessenta, ou cem por um!

Frei João Costa
.carmo | nº 266 | janeiro 28 2024