1. O relato do sacrifício de Isaac (Génesis 22:1-18) é muito estranho, embora, talvez, devêssemos dizer: verdadeiramente, ou simplesmente aterrador. É tão estranho – digo, tão aterrador – que não sei como ninguém sai porta fora da igreja ao escutá-lo na liturgia dominical!
(Opção a considerar é que ninguém o escuta, por isso ninguém sai!)
Então não é que Deus mandou a Abraão que degolasse em holocausto (!) a Isaac, «seu filho único»? – Incompreensível!
2. Creio que devemos puxar um pouco a fita atrás, para melhor percebermos (ou estarrecermos) com tal pedido ou ordem de Deus. Vejamos:
– Durante longos anos, Abraão fora homem a caminho com Deus; tal amizade transformou o seu coração ao ponto de merecer ser acolhedor da promessa de Deus, isto é, aprendeu à sua custa que quem se decide a viver para Deus verá que o Senhor cumpre o que promete (o que é muito mais que tudo o que se possa imaginar e ansiar…).
– Quando já não era novo, e sendo já bem maduro na fé, Deus estabeleceu aliança com Abraão; e, em consequência, vinculou-se a ele prometendo-lhe uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu!
– O certo é que os anos passaram para Abraão – e o mesmo se diga para sua mulher, Sara – e não lhes nascia um filho… Falharia Deus?
– Não, Deus não falha nunca e também não falhará da primeira vez. Aliás, contra todas as aparências e expectativas, o coração de Abraão sabe que «Deus está sempre a nosso favor» (Romanos 8:31); e se Deus está a nosso favor, quem nos poderá vencer? Ninguém. Ninguém, jamais!
– Quando, por fim, lhes nasceu um filho – Isaac – Sara, a mãe, tinha 91 anos (e Abraão, 100!).
– Entretanto, o menino crescia saudável e robusto, que dava gosto. Na sua alegria e jovialidade era a luz dos olhos do velho Abraão que, vendo crescer mais e mais os seus rebanhos e aumentar a sua prosperidade, já não mais se lamentava por vê-los ir parar a mãos de estranhos.
3. O nascimento e crescimento de Isaac representa a certeza de que a Voz que promete esperanças, rebanhos, terras e descendência numerosa, cumpria o que prometia e o selava com aliança.
4. Um dia, porém, aquela mesma Voz-fonte-de-esperança ordenou a Abraão que lhe sacrificasse a sua esperança – que matasse o menino!
Mas que ordem tremenda!
Quem poderá aceitar que Deus lhe diga: «Oferece-me o teu filho (Isaac) em sacrifício?».
Hoje não compreendemos tal; porém, Abraão sentiu-o assim e assim obedeceu, cumprindo e completando todas as tarefas até chegar o momento de erguer o cutelo sobre o pescoço do filho!
(Há, porém, para nós uma vantagem sobre Abraão. Hoje sabemos que aquilo era um teste à sua fidelidade – «Deus quis prová-lo…»; Abraão, porém, não sabia nada disso e dispôs-se a matar a luz dos seus olhos – a prova da sua esperança em Deus!)
5. Aqui chegados, estarrecemos. Sempre.
Perante a fé e fidelidade de Abraão a Deus, a nossa fé tremelica ainda hoje. Várias hipóteses se nos colocam:
– Para uns (Kant, à frente) é inaceitável que Deus desse aquela ordem; uma alucinação diabólica sim, Deus não. Abraão fora enganado, portanto;
– Para outros (com Kierkegaard, como capitão), só Deus verdadeiro pode pedir-nos (no caso, a Abraão) que sacrifiquemos o que mais amamos. Tal pedido, é certo, é uma enormidade, por isso mesmo, só Deus, o único que sai da norma, pode formulá-lo. Por sua vez, a obediência de Abraão, sendo terrível, revela uma fé total e uma confiança absoluta em Deus;
– ou seja, Abraão reconheceu, sim, ser aquela a voz de Deus. E sabe também que a realização das promessas de Deus depende inteiramente do poder de Deus, e da nossa confiança deposta Nele!
Não, a fé de Abraão não é normal – por isso está à altura de Deus, visto que foge a todos os esquemas e medidas. Uma fé assim prescinde de caprichos pessoais, de toda a lógica racional. Quem agora assim actua só pode ter sido antes tocado por Deus; só pode ser alguém que com Ele muito lutou – com Ele e consigo mesmo! – até haver tocado o mistério mais profundo – o de Deus! É óbvio que Abraão não entendeu (nem podia entender) o que Deus lhe pedia – apenas que era Deus que lho pedia… E por isso se dispôs a cumprir o que lhe era pedido, mesmo sem compreender. Nunca tal antes se ouvira; nem da parte de Deus, nem da humanidade representada em Abraão. Este, porém, acreditou que a promessa de Deus não podia falhar (e não falharia nem falhará), pois acreditava que o poder de Deus poderia (e ainda pode) fazer renascer das cinzas o seu filho imolado! Aliás, se do seio morto de Sara, Deus fizera nascer Isaac, como não poderia fazê-lo ressuscitar dos mortos?
6. Abre, agora os olhos, leitor, leitora, e vê: Abraão já ata as mãos do menino e o coloca sobre a lenha! Toma ele, então, o cutelo… e… ouve-se a Voz – «Abraão! Abraão! Não desças a mão sobre o menino! Eu vi que tu respeitas a Deus, pois não me negaste o teu filho único!».
E vendo nós, homens e mulheres do séc. XXI, como o pai já desata os nós da corda que prendem o filho, digamos: – Tu, porém, Pai Eterno, não perdoaste a vida do teu Filho Amado, o teu Filho Único – Jesus!
Glória a ti!
Glória, honra e louvar a ti, que pelo sacrifício de Jesus nos salvaste! Sim, Tu entregaste Jesus à morte para, através do Seu sangue, nos livrares da escravatura do pecado e da morte!
Glória a ti, a quem não agrada a morte dos seus fiéis!
Glória a ti, que em todas as eras nos tens poupado e que, na plenitude dos tempos não poupaste o teu Filho!
Glória a ti!
7. Aceita, Senhor, os nossos hinos de louvor e honra, e dize aos nossos corações, cansados e perturbados, aquelas coisas, grandes e pequenas, que nos pedes sejam sacrificadas (e que ainda não estamos dispostos a fazê-lo).
Fala, Senhor, e dize; fala-me ainda que sejam palavras duras de ouvir (e sê-lo-ão). Fala até que meu duro coração oiça.
Fala até que de mim te contentes por eu te responder: «Aqui estou» (Génesis 22:1).
Frei João Costa
.carmo |nº 270 | fevereiro 28 2024