Ponto Carmo

Tinha de haver um Domingo “Alegrai-vos”

1. Vai a Quaresma a meio, e nós que nos dispusemos a trilhar o caminho da penitência, bem merecemos que haja um domingo que se diga da alegria. Passaram-se já três semanas de penitência, jejuns, oração e caridade intensas; ficam a faltar outras três para a Páscoa. Não terminam por aqui os exercícios quaresmais, mas neste domingo quarto, sempre acontece uma paragem, uma espécie de descanso, porque nele se dá um vislumbre da Páscoa. Este ano a Quaresma iniciou-se a 14 de fevereiro, Quarta-feira de Cinzas; já se passaram três semanas e agora iniciamos a quarta. É este o Domingo Laetare; laetare é palavra latina que significa alegria; mais bem, no imperativo: alegra-te! Regozija-te!

2. Quaresma é, para quem se dispõe, sinónimo de rigores, de combate. Viver em Quaresma é fazer preparação espiritual para a celebração da Páscoa.
Durante este período de quarenta dias a Igreja propõe aos seus filhos e filhas que tenham cumprido 14 anos que evitem comer carne na quarta-feira de Cinzas, nas sextas-feiras da Quaresma e na sexta-feira Santa.  A esta proposta de exercício corporal chamamos-lhe abstinência, e tem reflexos no fortalecimento do espírito – e além de que, muito provavelmente, a refeição não seja como gostas, deves também procurar ajudar alguém, se não com dinheiro, pelo menos nalgum pequeno trabalho ou atenção.
Por sua vez, aos católicos adultos entre os 18 e 59 anos, além da abstinência de carne nestes dias, pede-se-lhes que também neles jejuem, isto é, que façam refeições mais moderadas, ao ponto de sentirem fome!
(Ah, e mantém-se o convite à partilha de bens e de tempo e atenção aos outros!)

3. Embora alguns católicos se distraiam destes deveres (ou ainda não descobriram o seu valor), a verdade é que outros muitos levam estes exercícios quaresmais muito a sério: não poucos jejuam quase todos os dias, ou mesmo todos os dias; oram mais e mais intensamente; e dão-se mais à caridade e à atenção às necessidades dos pobres. Para isso não precisam que o sacerdote lhes diga que façam um tanto ou quanto, pois cada um ouve a sua consciência e, se bem formada, seguem os seus ditames.
Nesta Quaresma encontrei vários (e não apenas católicos adultos e amadurecidos) que se decidiram a visitar doentes ou sós, lhes arrumaram a casa – habitualmente uma pobre casucha –, lhes levaram comida que fizeram em casa, e remédios que pagaram da sua bolsa; rezaram com eles; e quando necessário, acompanharam-nos às consultas.
Sei de casos onde isso sucedeu e sucede com regularidade; e não o soube por vanglória, apenas por discretos ligeiros sinais que afloraram sem querer.

4. Não, não. E se, porventura, alguns sim, a maioria não o faz para salvar a alminha, como quem entrega um penhor; nem para exibir virtudes que o não sejam. Fazem-no porque do outro lado estão corações feridos, olhos marejados de solidão, e mãos que mirram sem pão e sem afecto. E quando eles entram o quarto se alumia!
É verdade que alguns fazem isto todo ano; e alguns só na Quaresma. Seja. É bom. E o que é bom não tem demora. Mas sei que na Quaresma alguns mais abrem as mãos, mais o coração, mais a alma, mais a bolsa, mais o olhar e a atenção. Ora, isso cansa. E alguns não descansam tanto assim. Não veem programas preferidos, nem consomem vídeos do youtube ou do tik-tok. Não se dão a gostos e até freiam a língua!
Parecendo que não, a caridade mói e cansa.

5. Insisto: não o fazem nem por medo de perder-se nem por vanglória. Nem tão-pouco por serem católicos ou católicas, mas também por isso. Fazem-no porque são homens e são mulheres, fazem-no mor amor, sem pedir retribuição. É por grandeza de alma e por humanidade. Para que aquele pobre que funga e chora confusas lágrimas de gratidão enquanto o cuidam – lhe fazem a barba e lhe cortam as unhas… – saiba que alguém sabe que ele é homem ou mulher, que é gente, e não um monte de pele e Zé-nada que para ninguém nada vale, mesmo em maré de campanha eleitoral.

6. Quem assim se dispõe para a Quaresma; quem pelo respeitar as engelhas fundas como vales no rosto envelhecido de um velho Zé-nada, e nele antecipadamente reconhecer o rosto glorioso de Cristo; quem dessa maneira ou, porventura, de outras ainda mais exigentes e menos notórias, vive em Quaresma, preparando-se para a Páscoa; quem assim vive, é mais que certo que precisa de um domingo chamado alegria! Precisa, enfim, de um descanso.
Claro que a caridade cansa. Cansa os braços, cansa o corpo. E cansa a mente. (Outros que mais cansam, melhor podem falar que eu. Eu compreendo a alegria e a recompensa de quem, só de abrir os braços e o sorriso, ajuda a crescer meninos – um dia sentir-se-ão recompensados. Já, porém, mais me dá devoção quem beija rostos velhos, os lava e penteia, puxa a mantinha para os joelhos, calça luvas e pantufas.
Enfim, como cansa a caridade quando é sem fingimento!…
Ora, corpo que cansa e boca que beija, reclamam descanso e retempero – é isso que nos lembra o Domingo Alegrai-vos! Sem deixarmos de ser quem somos, sem deixarmos de rezar, e sem abandonarmos as penitências, lembramos, desde longe, que no dia sem dia alcançaremos o descanso. Não é uma proposta para sentar-se, de vez, à beira do caminho a ver a banda passar; é mais um recuperar a coragem e o ânimo para depois melhor e mais corrermos para os braços do Senhor cravados na Cruz, e com Ele vivermos a alegria da Cruz, onde Ele já tudo nos deu: a vida, o sangue, o coração, o sopro, alma, o perdão, a mãe, o vazio obediente do seu corpo morto!
Claro que, juntos, precisamos de anunciar e mais amar o Domingo Alegrai-vos! De conclamar que o domingo é o dia mais importante para o católico, e que se é o Alegrai-vos, que ele nos diz que a história não termina nos dias de dor e confusão, de perturbação e sofrimento, de negrura e morte! Não, esses dias não são o fim pois que, em pós esses, virá o tempo sem tempo, sem dias nem semanas ou horas, onde se dá a consumação da história, e todos veremos a glória da vitória de Cristo sobre a morte.

Frei João Costa
.carmo | nº 272 | março 10 2024