1. O Evangelho do domingo de Páscoa situa-nos na manhãzinha do primeiro dia depois do sábado, «quando ainda estava escuro»; por sua vez, o Evangelho deste segundo domingo de Páscoa situa-nos uma semana depois, também no primeiro dia da semana, mas «ao anoitecer», estando os discípulos, juntos, num lugar, «com as portas fechadas» por «medo aos judeus».
Perante a morte atroz de Jesus, o medo dos discípulos é bem escuro, tal como escuras são as paredes e as portas fechadas à sua volta.
Sim, de facto, o escuro medo é o sentimento que primeiro marca a Páscoa; só depois, é que vem a alegria. Primeiro, a noite e o medo; depois, a luz, o dia, e a alegria.
2. Porventura, ainda em nossos tempos, os lugares para onde mais deslizemos, mesmo nos gozosos dias de Páscoa, sejam os lugares mais fechados e mais escuros. E, por conseguinte, simultaneamente, onde mais nos estremunhemos seja nos lugares da luz.
Ainda hoje parece que nós, cristãos, seguimos mais preferindo o recato insosso e bafiento, os rios de lágrimas escuras, o negro remorso e a certeza do medo. E também me parece que, como Igreja, isto é, como comunidade de fé a caminho, o que mais seguimos temendo seja andar em dia luminoso, correr avantajadamente em alegria nova, em júbilo incontido, em ousada esperança, em esplendorosa novidade.
Ano em pós ano a este lugar escuro volvemos e nele nos revolvemos, fazendo com que a novidade da luz nova sempre se torne rância, e mais velha que a velhice que nos acaçapanha e nos amordaça.
Não me espanta a mim a estranha atitude de Pedro e dos demais discípulos, nas horas em pós a morte de Jesus. É certo que foram eles quem tudo recebeu em primeira mão: a eleição, a amizade, a palavra, o pão, a missão, a bênção e a oração de Jesus. É certo que logo podiam e deviam ter acreditado, à primeira, e não acreditaram, ter confiado e não confiaram.
Também não era fácil, convenhamos…
Antecipadamente, Jesus prometera-lhes que depois da sua morte a eles regressaria; e eles, como se não tivessem ouvido, como se não Lhe tivessem dado ouvidos, não ousaram esperá-l’O para O abraçar, para por Ele serem abraçados; e deprimidos, acabrunharam-se, encafuaram-se, recluíram-se e enclaustraram-se no medo. E se, primeiro, ante a iminência da morte do Mestre, Dele fugiram e O negaram, depois, postos ante a evidência da Sua gloriosa vitória, como que de novo O renegaram porque, por vezes, a esperança é como uma flor: desponta tenra de debaixo da neve; e se ali nasce, algumas vezes, por ali definha, sem paciência para esperar pelo degelo da primavera!
3. A manhã de Páscoa é toda ela escura, mesmo se a Luz há muito, inesperada, invencível desponta, por aqui, por ali, e por todos os lados. Aliás, no coração de quase todos os discípulos todo o dia será obscuro como o remorso, mesmo se Madalena já O viu, e se João, pronto, logo acreditou. Nada, pois, me tira da alma que o dia da Páscoa é bem escuro, mesmo se para os amigos mais amigos ele é luminoso desde as primeiras horas!
Escuro versus claridade; escuridão, porém, suplantada, sem ninguém saber, pela claridade invencível – eis a Páscoa!
Não pode não espantar-nos todo aquele inteiro negrume fechado, aquele bafio da alma em negação, esse inteiro e contínuo não da criatura ao Criador, do discípulo ao seu Mestre, dos amigos ao Amigo.
É claro que, ao anoitecer do dia – e é que Ele esperou que anoitecesse, caramba! – se fez luz! Isto é: foi só sob os véus da noite total, interna e externa, que a Luz se lhes revelou, e definitivamente venceu e se fez presente e esclareceu os corações da Primeira Igreja!
– Estou aqui. Vede-me: Eis-me aqui, convosco, feito paz e perdão, disse, e tocai-me! Isto é, experimentai, juntos, a alegria em minha presença!
Estando, portanto, como diz o evangelho, toda a casa cerrada e todas as portas fechadas pelo ferrolho do medo, entrou ali o Senhor em sua luminosa ressurreição e mostrou-Se-lhes. E eles viram-n’O! Juntos viram o que ainda não tinham podido ver nem sentir! Juntos sentiram a paz e o perdão, tal como juntos viram as mãos furadas e o bendito lado rasgado. Juntos viram o que nunca jamais antes alguém tinham podido ver. À luz obscura da da fé viram, juntos, a Luz que jamais antes alguém tinha podido ver! «E todos ficaram contentes!». Quer-se dizer: não se alegrou apenas um ou outro, por aqui ou por ali; mas alegraram-se todos (enfim, todos menos um, que não estando presente não pôde ver…) e todos juntos puderem testemunhar de contentes: «Vimos o Senhor»!
4. Mergulhados estavam, ainda há pouco, todos no remorso e na escuridão, e lá, por fim, ao anoitecer, à hora em que morre a luz, viram todos a Luz que se lhes abria e, invencível, irrompia no meio deles – que estavam todos juntos!; e desde ali todos se alegraram e se dispuseram a testemunhar as razões da alegria: «[Todos nós] Vimos o Senhor!».
O que a mim mais me ata a atenção é o pronome indefinido «Todos». Todos tinham fugido. Todos tinham traído. Todos agora se acabrunhavam. Todos se fechavam. Todos se apavoravam. E por fim, todos foram visitados pelo Ressuscitado! E todos foram por Ele perdoados. Enfim, só se puderam alegrar todos quando, juntos, todos O viram. Só mesmo, quando todos. Todos. Todos. Todos, enfim, menos um. Essa é a nossa senha: Todos! Todos juntos!
Sim, só quando todos O viram, é que todos acreditaram; todos, todos, menos um. Sim, só quando todos O viram é que todos O reconheceram, porque só se vê bem quando se vê junto! (Aliás, não é à toa que em Portugal se diz que quatro olhos veem melhor que dois!…)
Eis a condição do ver e do crer bem: quem vê só não vê bem!
Sim, só porque juntos, e quando juntos, é que todos puderam acreditar; só ali, só então, e não antes. Todos juntos é que vemos bem!
O que, pois, ajuda a crer não é outra coisa senão estarmos todos reunidos, desenganarmo-nos juntos, chorarmos juntos, rirmos, pensarmos e rezarmos juntos. Aliás, e mais uma vez: sabemos bem que foi só quando todos O viram que todos Nele acreditaram!
5. É por isso que só com ansiosa gratidão bem poderemos ler o evangelho deste segundo domingo de Páscoa (João 20:19-31) – É que nós estamos lá! Ou melhor, estamos insertos precisamente naquela narração evangélica porque, tal como Tomé, também nós não estávamos juntos, com todos, naquela hora do primeiro anoitecer do primeiro dia da ressurreição!| E se lá juntos não estávamos, não O vimos, logo não pudemos acreditar.
6. Assim ontem; assim hoje.
Só estando todos, acreditamos todos. Que quem não está com todos não tem olhos suficientes para crer!
Frei João Costa
.carmo | nº 276 | abril 7 de 2024