Ponto Carmo

Uma Quaresma especial

1. Eis-nos, de novo, no início da caminhada quaresmal.
Sim, caminhamos, mas não sozinhos porque, toda a Igreja está caminhando junta e em jubileu. O convite, portanto, é o de que todos caminharmos como peregrinos de esperança. Caminhamos também com Jesus. Ele vai connosco levando a sua cruz. Levemos também a nossa. Levemos também a de Francisco e a de tantos doentes com forças a menos para carregar tanto peso. Esta Quaresma é, de facto, uma Quaresma especial.

2. Toda a Quaresma são quarenta dias – a palavra vem, precisamente, dessa cifra de dias – quarenta; porque quarenta é o número de dias que vão desde a Quarta-feira de Cinzas até Quinta-feira Santa (início da Páscoa). Este período formoso de tempo é mesmo especial, porque pela provação que os exercícios quaresmais que nós, católicos, estamos chamados a praticar, mais nos unimos a Cristo e à sua Páscoa.

3. A Quaresma existe em função da Páscoa. Ora se assim é, e se a Páscoa de 2025 é especial, deveríamos atender que entre as muitas que já celebrámos, esta tem tudo para ficar célebre; e deveríamos atender a isso. Não se trata de ficarmos nós célebres, mas de reforçarmos a distinção desta caminhada com o acerto dos nossos passos de regresso a Deus.

4. Ainda que por inteiro não nos digam, nós vemos que os dias em que vamos vivendo são de puro negrume, de escuro e duro terror, semeado por mão louca que, semana em pós semana, vem medrando e crescendo à beira da porta do nosso terreiro. Não digo que, pequeninos que somos, sejamos nós quem dispara e faz guerra. Já digo que, para que não nos façam directamente guerra, nem destruam as nossas cidades e estilo de vida, outros morrem por nós. Não sei se exagero, mas parece que de todo não erro.

5. Nós temos um chefe que, por algo, se veste de branco. A sua voz é reconhecida e ouvida para lá do rebanho; mas pesa-lhe a idade e a doença corrói-o. E, ademais, encontra-se prostrado pela doença, na cama de um hospital. Leva doze anos a rezar e a dizer que estamos a viver a III Guerra Mundial aos pedaços – e até já o vi de joelhos a beijar os sapatos de cabecilhas partidos inimigos e em conflito; por isso não duvido que fez ou faz tudo o que pode para parar qualquer guerra. Nós, os pequeninos, escutámo-lo, sim; mas quem devia, parece que não quer ouvir nem dele saber nada. Ou se sim, nada faz; ou se fez, então ainda estamos pior. O facto é que estamos em guerra; e quando assim é, perdemos todos. É de lei.

6. O mundo está cada vez mais escurecido pelo estrondo de destruição e da mentira, pelo fumo da reabertura das fábricas de armamento – o que era impensável há três anos, é hoje verdade: a morte é cada vez mais um negócio.
Ainda vamos sorrindo, mas já não podemos ignorar o martírio da Ucrânia. E outros.

7. Sim, é este o contexto infame em que vivemos e rezamos, nós, e não apenas nós. E é aqui que, hoje, a Palavra de Deus nos toca e nos chama à conversão. Não, não a podemos ignorar. Porém, não é apenas este contexto que faz com que esta Quaresma seja especial. Senão, reparemos:

8. Em 2025 os cristãos católicos e os cristãos ortodoxos celebraremos a Páscoa no mesmo dia – a 20 de abril. Em muitos séculos (desde o ano de 1054) será a primeira vez que isso acontece! Ora se católicos e ortodoxos celebramos a Páscoa no mesmo dia, isso significa que, mais dia, menos dia, todos estamos em Quaresma; em caminhada de renovação.
Mas existem mais dados, neste ano de 2025, a Páscoa judaica celebra-se entre os dias 12 a 19 de Abril; isto é, enquanto nós, católicos e ortodoxos, nos encontrarmos a celebrar a Semana Santa. E existe ainda outra coincidência: neste ano, o Ramadão, mês do jejum ritual para os muçulmanos, calha no mês de março, isto é, precisamente quando nós, cristãos, estamos em Quaresma, dedicados aos exercícios quaresmais!
Que, pois, pensar, senão que estas coincidências mais nos têm de fazer pensar e agir? Se, pois, durante Março (e um pedaço de Abril) os seguidores das três grandes religiões abraâmicas estamos em exercícios penitenciais, não seremos, nós, capazes de nos juntarmos e nos unirmos em oração ao Altíssimo e Bom Deus e implorarmos a paz entre irmãos? Poderão mais as armas que a penitência de tantos milhões de crentes? Poderá mais a morte que a prece? O dinheiro que a oração em comum? O derrame do sangue do irmão que o louvor a Deus? Poderão mais as armas que a caridade?…

9. Esta Quaresma é especial; mas conseguiremos que ela seja mesmo especial, isto é, que façamos com que ela seja mesmo especial?
A Páscoa não acontece porque algum de nós queira que seja Páscoa, mas porque «Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não morra, mas tenha a vida eterna», relembrou o Papa Francisco. E não daremos, nós, as mãos a Deus? Por estes dias, não haverá de mais doer-nos o coração, porque morrem de forma atroz e ignominiosa tantos dos Seus filhos e filhas? Que faremos nós, cada um de nós, nesta Quaresma especial? Não rezaremos mais, e mais confiada e intensamente, reforçando a nossa união ao Senhor, com todos e por todos os que nesta Quaresma rezarem pela paz?
Que faremos, nós, cada um de nós, nesta Quaresma especial? Não jejuaremos mais, não apenas de alimentos, mas, sobretudo, do supérfluo, do excesso nos gastos, de inimizades e de ódios, de afectos desordenados, de sentimentos de posse, de desconfiança perante o diferente de nós?
Que faremos, nós, cada um de nós, nesta Quaresma especial? Seguiremos de coração e mãos fechados; coração mouco sem ouvir e mãos sem abrir, como os cárceres e os sepulcros? O que está fechado não sente nem ouve, não vê nem se condói, não se compadece de ninguém (nem de si); que faremos, nós?

10. À porta da nossa Igreja do Carmo de Braga achegou-se um dia um profeta e puseram-no em cima duma pedra. Ali está, diante de nós, de mão estendida. Será ela a de Deus que se nos estende na mão do pobre que ignoramos? Do injustiçado que não reconhecemos?
No Evangelho deste domingo lemos que Jesus, «cheio do Espírito Santo, retirou-Se das margens do Jordão. E foi conduzido pelo Espírito».
Para onde fugiremos se depois da Quaresma vier uma rabanada de vento que nos arrebate?

Frei João Costa
.carmo | nº 313 | março 09 2025