CONTRIBUTO PARA O RESGATE DA MEMÓRIA
DE FREI JOÃO DA ASCENSÃO, CARMELITA DESCALÇO
(SÃO ROMÃO DO NEIVA, 1787 – BRAGA, 1861)
1. Nasceu no dia 26 de Outubro de 1787, na freguesia de São Romão do Neiva, concelho de Viana do Castelo. Foi batizado no Dia de Todos os Santos daquele ano, na igreja paroquial, com o nome de João Luís. Foram seus padrinhos Bernardo Peyxoto de Barros, que era seu tio materno e doutor em leis, e a Madre Rosa de Jesus Maria, religiosa beneditina, do mosteiro de Santa Anna de Vianna. Era filho legítimo de Manoel Dias Delgado e Francisca Maria Peyxoto; o pai provinha de lavradores abastados daquela freguesia, sua mãe, de São Miguel de Alvarães, no termo de Barcelos, pertencia a linhagem consagrada às leis. Do casal nasceram oito filhos; o sexto, Manuel Joaquim, ordenou-se sacerdote na Sé de Braga, e foi pároco de São Miguel de Alvarães; o oitavo é o nosso João Luís, que próximo dos 16 anos deixou a casa paterna, para entrar no Noviciado dos Carmelitas Descalços, no convento de Nossa Senhora dos Remédios, em Lisboa.
Na família aprendeu as primeiras letras e a língua e cultura latinas, o que não surpreende; pode também tê-las aprendido ou com o irmão Pe. Manuel Joaquim, ou na casa dos avós paternos, pois ali havia cabedal para tanto.
2. Entrou no Noviciado dos Carmelitas Descalços no dia 27 de junho de 1803, onde recebeu o nome de Frei João de São Cirilo. Não conhecemos, porém, a origem da sua vocação carmelitana. Se à data da tomada de hábito tinha já um irmão sacerdote na Arquidiocese de Braga, ignoramos por que razão João Luís não seguiu os passos de Manoel Joaquim. O certo é que na família a devoção à Senhora do Carmo é grande, como se testemunha na pequena capela dedicada à Virgem do Carmo, posteriormente, construída, talvez pelo Pe. Manoel Joaquim. Esta capela ainda existe, encontra-se adossada à casa familiar e é testemunho da veneração da família pela Mãe do Carmo e do Carmelo. A influência da proximidade do convento de Nossa Senhora do Carmo de Viana também não é de enjeitar.
Concluído o Noviciado a 28 de junho de 1804, iniciou, de seguida, a sua formação filosófica e teológica nos colégios superiores da Ordem: de outubro de 1804 a fevereiro de 1805 fez o coristado no convento do Carmo do Porto, que correspondia a um reforço das letras e do latim; de outubro de 1805 ao Pentecostes de 1808 cursou Filosofia no colégio do Carmo de Figueiró dos Vinhos; de outubro de 1808 ao Pentecostes de 1811, Teologia, no colégio do convento do Carmo de Braga; e de outubro de 1811 ao Pentecostes de 1814 cursou Teologia Moral no mesmo colégio.
Ao todo foram dez anos de formação nas ciências eclesiásticas, com uma crise de escrúpulos pelo meio que, verdadeiramente, nunca terá sido superada.
Aos 23 anos, nos dias da oitava de Natal de 1810, talvez a 27 de dezembro, foi ordenado sacerdote.
Durante o triénio de Teologia Moral foi escolhido como passante do colégio de Braga, o que significava que cursando como sacerdote, simultaneamente, era preparado como professor dos colégios da Ordem em Portugal.
3. Após os exames de Teologia Moral, em fins de maio de 1814, foi enviado de Braga para o conventinho (o hospício) do Carmo de Vila do Conde, onde permaneceu até ao verão de 1816. Os seus trabalhos foram ali os típicos dum sacerdote carmelita: com preponderância para o Ofício Divino, reza da Missa e o serviço de confissões; se este hoje nos parece um programa pouco ousado, o certo é que a ele jamais se aplicará um refrão típico dos seus dias: «Na Igreja quem não sabe outra coisa diz Missa, na Revolução quem não sabe mais nada diz asneiras». Além destes menesteres, cabia-lhe ainda sair do convento, juntamente com um companheiro, para pedir esmola nas quintas e casais mais abastados das redondezas, ofício que visivelmente lhe repugnava. Talvez por isso, não espanta que do final do verão de 1816 ao verão de 1817 — o último ano daquele triénio — elegesse ingressar, por um ano — de facto não podia pedir mais que um ano —, no mosteiro de Santa Cruz do Buçaco, por ali se professar uma vida de profunda penitência e absoluta solidão, grandemente vivida em isolamento, nas ermidas espalhadas pelo frondoso Monte do Buçaco que, ao tempo, replicava o perímetro da cidade santa de Jerusalém.
4. Findo o ano de solidão no Santo Deserto do Buçaco, o famoso “céu ao contrário”, por se encontrar estacionado na terra, o Capítulo Geral de julho de 1817 entregou-lhe patente para ensinar, pelo que se pôs a caminho do convento dos Remédios de Évora. Era o pino de verão quando ali chegou. Uma vez ali, pontificou como presidente das conferências morais, o que apenas o ocupava uma vez na semana, à sexta-feira, sendo o restante do tempo ocupado na pregação na igreja conventual e nas das redondezas, e na direção de almas. O tempo que na região pontificou foi curto, é verdade, mas a memória da sabedoria da sua pregação prolongou-se por décadas.
No triénio de 1818-20 ensinou Filosofia no colégio de São João da Cruz de Carnide, em Lisboa; e de 1820-26, Teologia Dogmática no colégio de São José, em Coimbra; e de 1929-32, Teologia Moral, de novo em Évora.
Em 1832 foi reeleito prior do convento de São João da Cruz de Carnide, que viria a ser clausurado um ano depois, por ordem d’El Rei D. Pedro, que legislando desde os Açores dava início à sua reforma geral eclesiástica. Durante o verão deve-se ter deslocado para o convento do Carmo de Santa Teresa de Jesus, em Santarém, donde saiu, segundo notícias que possuímos, em finais de setembro ou inícios outubro desse ano para Braga, onde deixou um punhado de jovens formandos naquele colégio superior.
Depois de aqui instalar o pequeno grupo de estudantes, aqui deve ter descansado uns dias, talvez até ao Natal, partindo depois para o convento do Carmo de Viana do Castelo, onde permaneceu algum tempo, e donde houve de sair por ter começado a ser ali perseguido; chegado logo depois à casa paterna, em São Romão de Neiva, ali levou vida recolhida e discreta, dizendo Missa todos os dias, portando sempre o hábito castanho de Nossa Senhora do Carmo, donde lhe advieram incómodos vários, que o levaram para casa de uma irmã e seu cunhado, residentes no concelho de Ponte da Barca. Ali continuou a fazer vida de oração, sempre discreto, e sempre revestido do hábito carmelita, e celebrando sempre Missa, abertamente, numa capela próxima. E também ali começaram os incómodos, ao ponto de uma noite ter sido aprisionado por uma chusma de janíseros. Encarcerado a sete chaves por entre graçolas e faltas de respeito, logo que apresentado a tribunal, prescindiu de defesa por se preferir defender a si mesmo, arguindo com tal acerto e sabedoria contra os defensores da Carta Constitucional, provando que o seu arresto contradizia as liberdades que aquela pronunciava, pois a Carta não permitia a prisão de alguém sem culpa formada. E foi liberto com as desculpas do tribunal que o não obrigou a retirar o hábito. Após este inglório sucesso regressou, novamente, à casa paterna, onde não restou muito tempo, por os seus vizinhos e conhecidos não apreciarem a presença do bom frade — dizem ainda hoje dos de São Romão, que ao ser intimado a retirar-se do lar paterno, possivelmente até por alguns próximos ao seu sangue, os invetivou, declarando alto e bom som: Fica-te, São, Romão, e que não dês nem vinho nem pão! Se é verdade ou não tal legenda, não sabemos, que ninguém o sabe de ciência certa; o certo é que no lugar donde Frei João se despediu dos seus ainda hoje os campos estão pejados de muitas pedrinhas brancas, que só empecem o cultivo dos campos.
5. Os últimos 22 ou vinte e três anos foram vividos na cidade arcebispal, em casas amigas, sobrevivendo da caridade cristã, quer de amigos quer de alheios, e lamentando-se sempre de ser-lhes pesado no que eles assumiam como uma honra e uma bênção. Dedicava-se intensamente à oração, segundo as regras da Ordem; à mortificação e à penitência (foi neste tempo que passou a rezar todo o Breviário de joelhos, por exemplo); à caridade e ao sufrágio das almas, percorrendo incansavelmente os claustros conventuais da cidade rezando responsórios.
Por onde passou, passou amável, humilde e bondoso, pelo que foi sempre mui respeitado, quer pelos humildes, com quem mais se identificava e a quem mais servia, quer ainda pelas personagens ilustres da cidade e do reino.
Sendo pobre e de tudo carecendo, nada pedia para si, mas promovia, o mais anonimamente possível, a ajuda a pessoas e famílias de pobreza envergonhada, e provia de formação e de enxoval as jovens mulheres que desejavam consagrar-se a Deus, nalgum mosteiro da região.
A ele que em tudo e sempre apenas desejou ser carmelita perfeito, Braga de meados do séc. XIX chamou «O Fradinho do Carmo» e «o Santinho do Carmo», «O Santo Fradinho» e o «Santinho dos Pobres».
Morreu no sábado 16 de março de 1861, depois duma prolongada crise de escrúpulos causada não por defeitos reais, mas, segundo o que costuma suceder, por temor do menor defeito.
O seu funeral realizou-se no dia 18, segunda-feira, e foi oficiado pelos seus irmãos carmelitas descalços ainda residentes na cidade e por alguns outros eclesiásticos da mesma. Concorreram àquelas celebrações fúnebres algumas pessoas respeitáveis da cidade, mais de cem alunos das aulas maiores do segundo e terceiro ano do Seminário Arquiepiscopal e todos os alunos do seminário dos órfãos da cidade.
O seu corpo foi sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Braga.
6. Completaram-se em 2021, os 160 anos do seu falecimento.
Foi sepultado do lado do Evangelho, junto do arco cruzeiro da nossa Igreja; a seu tempo, espantado com o fenómeno, Camilo Castelo Branco foi um dos que engrossaram a longa fileira dos romeiros que visitavam o seu túmulo.
7. Sirva hoje o avivar da sua memória para nos ajudar a cantar as maravilhas de Deus, que sempre cuida e ampara o caminhar do seu povo!
Frei João Costa