1. Depois de férias, o nosso boletim .Carmo voltou às suas mãos. Regressamos, como sempre, no primeiro domingo de outubro, o vigésimo séptimo do tempo comum. No evangelho deste domingo encontramos uma inusitada prece dos apóstolos dirigida a Jesus: — Senhor, acrescenta fé àquela que já temos (Lucas 17;5)!
O que Pedro e os companheiros sentem é que a fé (tradicional) que têm, desde a infância, é poucochinha, é insuficiente, é nada. Sim, eles têm fé, não haja dúvida que têm. Mas se nos lembrarmos que, acompanhando Jesus, eles vêm há largos dias subindo para Jerusalém, ou seja: são directa e intensamente catequizados por Jesus, então percebe-se que faz sentido que eles peçam algo mais, mais fé que aquela que têm — uma fé que lhes permita seguir Jesus até ao fim e fazer como Ele fez.
E quem melhor do que Ele para lhes dar o que lhes falta na fé? Contemos um conto:
2. Há muitos, muitos séculos antes de nós, viveu na China um menino chamado Ping. Isto não é inventado, pois Ping existiu mesmo. A alegria do menino eram as flores, fossem elas quais fossem.
Tudo o que ele semeasse ou plantasse crescia esplendidamente, como por magia. Era fantástico!
Um dia, ainda Ping era bem menino, dando de si, o velho Imperador da China concluiu que em breve morreria sem deixar quem lhe sucedesse no reinado. Ocorreu-lhe, então, ser seu dever ter de nomear o seu sucessor. Mas quem poderia ser? E qual o modo de o escolher, visto que não tinha filhos? Foi então que se lembrou que poderia deixar que as flores o escolhessem. Por isso, logo mandou anunciar por todo o Império que, em certo dia, todas as crianças deveriam vir à Praça Maior da Império, a fim de receber do Imperador sementes de flores. E concluía a mensagem: «quem, no prazo de um ano, me mostrar o melhor resultado será o meu sucessor no trono da China!».
E ouviam-se palmas de confiança por toda a Praça Maior do Império.
Obviamente que, por todos os recantos do Império, a notícia causou grande agitação na nação, pelo que vieram crianças de todos os cantos do País para receber as suas sementes. De facto, não havia pai que não quisesse que um dos seus filhos fosse o escolhido para Imperador. Ah, que alegria, que felicidade, que sonho ter um filho Imperador! Ah, de facto, todas as crianças sonhavam em ser as eleitas. Em revestir-se de ouro e poder… Coisa tão natural como a sede.
Quando Ping recebeu as suas sementes, sentiu-se a mais feliz de todas as crianças. Estava totalmente convencido de que poderia cultivar as flores mais bonitas e apresentá-las ao Imperador.
Chegado a casa, Ping logo encheu um vaso com terra e semeou as sementes. Depois regou-as. E assim o repetiu, delicadamente, todos os dias. Entretanto, os dias foram passando, mas no vaso nada germinava, pelo que Ping se sentiu verdadeiramente triste. Então, escolheu um vaso maior, colocou nele a melhor terra, pegou em novas sementes, conversou com elas para as animar e semeou-as com delicadeza. Esperou dois pacientes meses e nada aconteceu. E pouco a pouco, em menos de um fósforo, passou um inteiro ano de esperas e impaciências.
Chegou, por fim, a primavera e as crianças vestiram as suas roupas mais bonitas para agradar ao Imperador. Dirigiram-se felizes à Praça Maior do Império, cada uma com os seus vasos lindos, cada uma esperando ser a escolhida do Imperador.
Por sua vez, Ping sentia-se envergonhado com o seu vaso vazio, sem flores. Sem nada. Pensava, e bem, que as outras crianças iriam gozar com ele. Mas mesmo assim foi para a praça.
Chegada a hora o Imperador apareceu e começou a observar, a observar atentamente todas as flores. Que flores tão bonitas! Oh, que flores!… E o Imperador sorria sem dizer uma palavra. E sorria! E seguia sorrindo. E sem dizer uma palavra, percorria lentamente a praça. Finalmente, achegou-se a Ping, a quem não restou alternativa se não a de erguer as mãos com o vazo vazio, a baixar a cabeça cheio de vergonha e esperar ser castigado.
Então, o velho Imperador perguntou-lhe:
– «Por que trouxeste um vaso vazio?».
Ping começou a chorar e respondeu:
– «Semeei da semente que me deste. Reguei-a todos os dias, cuidei-a com o meu coração, mas ela não germinou. Voltei a semeá-la num vaso maior, coloquei da melhor terra, cuidei-a com o melhor do meu coração e ela também não germinou. Esperei um ano inteiro, mas nada nasceu, nada apareceu, nada cresceu. Por esta razão, hoje venho à tua presença com um vaso vazio. Fiz o melhor que pude!».
Quando o Imperador ouviu estas palavras, um imenso sorriso luminoso surgiu-lhe no rosto; colocou a mão no ombro de Ping e exclamou:
— «Encontrei a única pessoa digna de ser Imperador! Não sei de onde todos tiraram as sementes que lhes nasceram e depois cultivaram. Porque as sementes que, no ano passado a todos dei, tinham sido anteriormente cozidas. Ora, portanto, era impossível que germinassem! É por isso que eu admiro Ping pela coragem que teve em se apresentar diante de mim com a sua verdade vazia, nua e crua. Portanto, agora mesmo o recompenso com o reino e o nomeio meu sucessor!».
3. Vitória, vitória, eis a moral da história: se formos sinceros, se cada um de nós bem meter a mão no coração, concluiremos que muito do que cada um de nós faz na vida apenas visa luzir e evidenciar-se — e é que isto é tão humano e, ao mesmo tempo, bem pouco cristão!
Ah, só nós, só nós, ninguém mais, ninguém como eu, ninguém mais!
Oh, meu Deus, como quão todos somos tão subtilmente egoístas, a ponto de nos autoenganarmos quando praticamos boas acções! Sim, que ninguém ouse passarmos a perna nem nos engane; que ninguém tente fazê-lo ou reclamamos e exigimos sermos levados a sério. Que se reponha a verdade e se castigue toda a fraude, porque ninguém como eu para fazer e acontecer!
Que ninguém ponha o pézinho em ramo verde, ou nós não nos calamos quanto ao mérito que temos ou julgamos ter em tal fazer ou acontecer. Afinal, os outros, julgamos nós, têm o dever de reconhecer o quão só nós é que bons somos! Que é por nós que o sol se alevanta pela manhã ou que a chuva desce sobre a terra! E mais: que ninguém nos aponte erros ou defeitos… Ai, isso não, isso não, que nem pensem, que ninguém se dê ao desplante!
E passe-se o que se passar, ao fim do dia deitamos a cabeça no travesseiro para, tranquilos, adormecemos, convencidos de que fizemos tudo o que nos cabia fazer ao longo do dia; convencidos de que o mundo rolou por termos sido nós a dar à manivela. Por termos sido nós a comandar a máquina que ora fez sair o sol, ora o recolheu e estendeu sobre o mundo o manto nocturno! Sim, hoje e amanhã e além podemos dormir descansadamente, de consciência limpa porque, afinal, Deus tem de recompensar-nos, porque se o mundo está a salvo, a nós se deve!
Meu Deus…
4. Poucas experiências para além do semear e do colher nos ajudam tanto a percebermos o lado gratuito da vida. Sim, ninguém como o semeador sabe que tem de afadigar-se no preparar e cuidar da terra antes de semear. Ninguém como ele sabe quanto custa cuidar para que a semente nasça; sim, o semeador sabe que deve preparar a terra, depois semear, depois, sachar, mondar e regar, e voltar a regar, a acompanhar e a voltar a regar; e sabe que não pode fazer muito mais, pois o restante é cuidado de Deus.
Todo o fruto é dom de Deus.
Toda a água e o ar é dom de Deus.
Toda a chuva e todo o sol é dom de Deus.
Todas as forças são dom de Deus.
Nós jamais despertamos as flores; nem somos donos do crescimento dos frutos. Podemos ser muito inteligentes, muito ricos e muito fortes, mas nada disso manda que uma flor se abra e dê fruto!
Fazemos, façamos a nossa parte; e confiemos que Deus fará a sua. Em nosso favor. Antes que possas colher uma pera e a proves é preciso que trabalhes, e trabalhando, colabores com Deus, pai de cuidados e cheio de bondade e de ternura por nós.
Nenhum bife nos cai no prato porque sim; e porque não podemos comê-lo inteiro, até esse trabalho temos de ter.
Afinal, ter fé é fazer a nossa parte, é cumprir o nosso trabalho o melhor que podemos e sabemos, e depois deixarmos a Deus ser Deus, deixarmos que, através de nós, a obra da salvação aconteça e dê muito fruto!
Frei João Costa
.carmo | nº 332 | outubro 05, 2025