Ponto Carmo

O Senhor esteve a meu lado

1. Muito me prendem a atenção as palavras do Apóstolo das Gentes. — O Apóstolo das Gentes é Paulo de Tarso, como se sabe —. É ele quem por trinta anos cruzou a teia dos caminhos do seu tempo para anunciar o Evangelho entre os corações pagãos, pregando, incansável, a propósito e a despropósito.  A propósito e a despropósito é o jeito de Paulo dizer sempre e sem descanso.
Em boa verdade, Paulo parece ter sido um pregador monocórdico, chato, demorado, maçador, cansativo: caso necessário falava uma noite inteira! E tantos adormeciam enquanto falava… Mas do que não há dúvida é que o Apóstolo era um homem erudito falando com unção; e mais, fazia aquilo que ensinava!

2. E além de dizer, escreveu. Para nossa sorte e proveito, escreveu-nos. Se chato era na pregação, já a sua escrita é viva e ardente, longe bem longe de ser balão cheio de vento. A verdade é que o protagonismo de Paulo entre é tão sobressaliente que muitos o veem como o fundador do cristianismo; não o é, apesar de ser indiscutível a sua influência. Ninguém como ele pregou tão ardentemente o Evangelho nas principais cidades do Império; nem ninguém como ele fundou, edificou e acompanhou comunidades cristãs.
Quando foi martirizado em Roma, no ano 67 (ou 68), crê-se que os cristãos eram em torno aos quinhentos mil, fruto da sementeira de muitos, mas sobretudo da força da palavra e do ardor do testemunho de Paulo.

3. É por isso que me encantam as palavras de Paulo, particularmente as de despedida como as que hoje lemos na Missa. Tais palavras são um excerto da Segunda Carta que o Apóstolo escreveu ao jovem bispo Timóteo, seu discípulo amado como um filho, por ter sido ele quem o batizara e o integrara, juntamente com Silas e Lucas, na sua equipa missionária. São palavras fortes, lavradas e deixadas como testamento; de facto, este é o último texto do Apóstolo, escrito na sua última prisão, mês ou meses antes do martírio.
Por aqueles dias os cristãos eram ferozmente perseguidos por Nero; longe de Roma — onde já antes estivera preso pelo menos uma vez — o Apóstolo para ali se desloca em solidariedade com os irmãos perseguidos. E foi também ele preso, porque era facilmente reconhecido como líder cristão. E que sucedeu, então? Sucedeu que Paulo, envelhecido e roído pela doença, se encontra preso e acorrentado, sobrevivendo em muito más condições. O seu fim está próximo, e ele sente-o. Pede então licença, uma pena e um pergaminho e escreve; uma das cartas vai para o filho amado, deixando-lhe o seu testamento. É é por isso que aquelas palavras me queimam.

4. Não podemos, e não posso eu, imaginar os dias últimos do Apóstolo Ardente, vindo para ali, quando um rio de sangue cristão lavava as ruas de Roma. O certo é que acabou só, preso e abandonado num cárcere imundo.
Como sentiu profundamente aquele abandono que tanto lhe magoou a alma! A verdade, é que não era fácil que alguém lhe desse apoio, pois assumir-se cristão supunha carimbo de morte certa, pelo que quase todos se encapotaram ou esconderam. E em consequência, quando levado a tribunal, o Apóstolo ali se apresentou sujo, descuidado, só e abandonado.
Pobre Apóstolo, pobre campeão, pobre velho! E como se lamenta e chora ele a Timóteo: «Todos me abandonaram»!
Pôde, contudo, receber algumas corajosas visitas — no caso, Lucas, o evangelista, e Onesíforo, cristão de Éfeso — e escrever cartas de despedida. Uma delas, esta que contém tais palavras de lava.

5. Lembremos as palavras que queimam:

6. «Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé».

7. «E agora já me está preparada a coroa».

8. «Todos me abandonaram».

9. «O Senhor esteve a meu lado e deu-me força».

10. Ao lê-las entramos quase sem querer na alma incansável do Missionário do Evangelho e percebemo-lo consciente do fim e sabedor de que a sua carreira está terminada! Sabedor de ter combatido até ao fim e de ter ganho! De que ganhar é mais que não perder; e de ser merecedor da coroa da vitória!
Sim, é verdade, nestas poucas palavras sente-se o seu lamento de velho gemente: todos o abandonaram; todos, menos o Senhor que, até nas derrotas, sempre, sempre esteve a seu lado!
Ao longo dos trinta anos de pregação do Evangelho, não tinham sido poucos os momentos em que se sentira sozinho, como coelhinho diante do leão, das malvadezas dos judeus, das ameaças e do risco de perder a vida. Sim, não foram poucos tais momentos… Mas ainda assim o Evangelho não pereceu!

11. Pobre Apóstolo!
Dedicado ao Evangelho cansou-se e ficou só! No fim, tem uma certeza: merece a coroa que receberá na vida eterna; sim, ele sabe que existe uma vida eterna pela qual valha trabalhar, e existe a coroa que vale a pena conquistar! É só essa que Paulo quer, a da justiça que os seus trabalhos e canseiras, dores e combates, merecem. Nenhuma outra.

12. Existam hoje Timóteos que mereçam tal testamento.

Frei João Costa
.carmo | 212 | outubro 23 2022