1. Quando em março de 2020 nos encerrámos em nossas casas devido ao perigo do invisível inimigo – o vírus da covid-19 –, multiplicaram-se apelos de esperança nas redes sociais. Ouvimos nas televisões e nas rádios que uma Humanidade nova sairia da pandemia que nos havia inserido numa noite de incerteza e insegurança.
Dois anos passados, com o apoio incondicional dos profissionais de saúde, dos avanços da medicina e dos sacrifícios que todos fizemos, conseguimos atravessar este vale sombrio, apesar das lágrimas vertidas por tantos que hoje não chegaram até aqui.
2. Esperávamos recomeçar com uma sociedade mais fraterna e solidária, mais atenta aos mais frágeis, promotora da dignidade humana. Contudo, no leste da Europa, neste nosso continente que hasteava há tantos anos a bandeira da paz, rebenta uma guerra. Afinal, não ficou tudo bem.
3. Hoje é Natal. Nesta noite santa, celebramos a incarnação do Verbo na nossa história na lapinha de Belém. No meio da noite, brilha para nós uma luz pequenina capaz de incendiar os nossos corações.
Esta luz não se impõe. É delicada, propõe-se entrar. Bate à porta e espera o nosso assentimento. O Eterno feito carne não se dá a prepotências. É bebé, menino frágil e carente de cuidados.
Esta candeia acesa no meio da noite veio para nós, mas nós teimamos em não O receber. Preferimos outros holofotes a uma luz pequenina. Preferimos luzes que nos cegam ao Sol da justiça que vem aquecer as nossas almas.
4. Este ano celebramos o Natal com as almas cabisbaixas pelo horror da guerra, da crise económica que atravessamos, pelaa incerteza relativamente ao futuro que, afinal, ainda não nos abandonou. Para o vírus da covid-19, acharam-se vacinas. Mas para os outros vírus os antídotos não são tão fáceis de encontrar.
O avanço tecnológico, a transição digita e as melhorias técnicas criaram em nós a ilusão de que este mundo se salvaria pelas nossas mãos. Ousámos achar que criaríamos um mundo melhor daquele que recebemos. Descobrimos em nós uma capacidade de resiliência e de adaptação que nos surpreendeu a todos. De facto, é louvável o esforço que fizemos para nos encaixarmos numa “nova normalidade”. Mas tudo isto não foi suficiente para evitarmos o agravamento das desigualdades sociais e a crescente vulnerabilidade dos mais pobres face ao império dos mais poderosos.
5. Ao ligarmos as televisões, os anúncios que nos chegam são todos relativos à quadra natalícia. Chamou-me à atenção vários que se dedicam a retratar a fragilidade da saúde mental, sobretudo nos mais jovens. A ilusão do digital e do virtual, a construção de universos virtuais, o surgimento de influencers que apresentam um estilo de vida e padrões de beleza estéreis e irreais e o assoberbamento dos mais novos em séries televisivas em nada vem ajudar ao equilíbrio e à vida sadia. A necessidade de escuta, de compreensão e de integração que os mais jovens envergonhadamente exigem são um sinal de alerta para a incapacidade que hoje temos em comunicar com estas gerações.
6. Não pretendo que este seja um texto desanimador e tristonho. Afinal de contas, é Natal. Mas não quero celebrar este Natal com a ilusão de que está tudo bem. Basta de discursos populistas e demagógicos que nos movem como rebanhos sem pastor. Basta de discursos demasiadamente animadores que nada mais querem senão ocultar a verdade. Imploro palavras, gestos, sentimentos e pessoas capazes de levantarem as suas cabeças para o alto e deixarem-se iluminar pela Estrela que outrora guiou os Magos do Oriente. Hoje peço que tiremos os auriculares dos nossos ouvidos e deixemos, por um momento, as músicas e os podcasts para escutarmos os anjos que vêm ao nosso encontro para nos anunciarem uma grande alegria.
Hoje só peço uma coisa: ousemos ser Natal!
7. Diante do teu familiar, amigo e conhecido mais velhinho que se sente tão só: sê Natal. Sê luz, paz e alegria através da tua presença que acalenta o coração esfriado pela solidão. Sê sorriso que anima e é capaz de ajudar a esboçar sorrisos. Aprende a ternura contemplando a simplicidade e a beleza do Deus-Menino.
Diante da tua família: sê Natal. Sê comunhão, união, artesão da paz. Perdoa as ofensas dos outros porque sabes que Aquele por quem esperámos ao longo deste Advento veio para te salvar dos teus pecados.
Diante dos mais jovens que se sentem incompreendidos: sê Natal. Sê gruta de Belém, onde todos têm lugar e a possibilidade de reatarem as linhas de um novelo que parece todo ensarilhado. Sê luzinha no meio da noite daqueles que vivem deprimidos e sem esperança. Leva nas tuas mãos a candeia de Belém que te é ofertada pelo Menino Jesus.
8. Diante de toda a Humanidade e todo o Mundo: sê Natal. Sê arauto da esperança e da salvação que se faz carne para habitar connosco e ser Emanuel. Sê ousado no teu anúncio, não vivas amedrontado. A noite gelada e fria inaugura a aurora dos tempos novos.
Anuncia com a tua vida, com o teu coração, com o teu sorrido e com as tuas mãos a alegre notícia que nos chega lá do alto: Hoje nasceu para nós um Salvador!
9. Santo e feliz Natal!
Frei Francisco Maria de São José
Braga, 25 de dezembro de 2022