Ponto Carmo

A Luz que rasga a noite

1. Estamos, desde quatro domingos antes do Natal, num novo ano cristão. Terminado o ciclo do Natal com a Festa do Baptismo do Senhor encontramo-nos já a celebrar a primeira parte do Tempo Comum. Dentro de quatro domingos, porém, iniciaremos o Tempo da Quaresma.
Ao longo dos domingos deste ano cristão em curso proclamaremos e ouviremos nas nossas celebrações o Evangelho de São Mateus. Mateus será, portanto, o nosso catequista.
Durante o Tempo de Natal escutámos os dois primeiros capítulos daquele Evangelho, aqueles que falam da infância de Jesus; agora, no seguimento, virão os restantes. Que escutaremos de ora em diante, então? Escutaremos que depois de baptizado por João, nas águas do rio Jordão, Jesus deu início à sua obra de anúncio do Evangelho.

2. O evangelho deste terceiro domingo comum do Ciclo A divide-se em três partes: i) descrição da actividade de Jesus na Galileia; ii) relato do chamamento dos primeiros discípulos; e iii) resumo do que Jesus por ali fazia.
É óbvio que Jesus sabia o que queria dizer, e isso era o que dizia; tal como também é óbvio que escolheu dizê-lo a quem e onde quis. Uma coisa também é certa: tu podes saber e querer dizer uma mensagem, mas ela será sempre influenciada (diminuída ou amplificada, quero dizer) pelo auditório que tens em frente.
Repare-se: Jesus tinha uma mensagem bela e boa para dizer, mas já que a tinha de dizer e não podia dizê-la em todos os lados ao mesmo tempo, escolheu, certeiro, onde dizê-la: na Galileia! Podia ter eleito outros lugares, mais prósperos, por exemplo, ou mais capazes, mas não, escolheu a obscura Galileia. E escolheu discípulos para seu lado para que a ouvissem e, depois, por sua vez, também eles a dissessem.
(Sabemos que Jesus teve um fecundo ministério da Palavra por três anos — que vão desde a morte de João Baptista até à sua própria morte; e sabemos que antes deste ministério da Palavra teve um ministério e um magistério de silêncio e de trabalho de que deveremos falar noutro lugar…)

3. Mas por que escolheu Jesus para dizer a sua Boa Nova precisamente na Galileia, podendo, como podia, tê-la ido dizer para lugar mais atento, e até, porventura, mais preparado e mais capaz de ouvir? Para o percebermos teremos de entender o que era a Galileia de ao tempo. A Palestina, sabemo-lo, dividia-se em três partes: a Judeia, ao sul, onde se posicionava a capital — Jerusalém, e onde residia a gente sábia e influente; a Samaria, mais acima e, no topo de tudo e o lugar mais distante da luminosa Jerusalém, ficava a região da Galileia.
A Galileia, convém saber, não tinha pergaminhos. Não tinha nem tivera nunca grandes figuras políticas ou religiosas, militares ou financeiras. Não ombreava com ninguém, enfim. Até os profetas tinha declinado subir até lá! Era um povoléu arisco e inculto, mais afim, por vezes, a outros deuses que ao Deus verdadeiro; sabia onde ficava Jerusalém e o templo, isso sabia, mas era desprezado pelos habitantes da Judeia porque eram povo inculto, não conhecia a Lei de Moisés, a quem jamais doía a alma por não cumprir devidamente as disposições propostas pelos chefes religiosos. Os galileus eram os últimos em tudo, e não é que tudo estivesse bem, mas era assim que era, e não se questionavam. Eram quase pagãos, ou pelo menos os puros assim os faziam crer, e eles isso criam e aceitavam.
Ora, foi no meio desse povo inculto, semi-pagão, perdido nas montanhas, trabalhador e, pelos poderosos espoliado até do pão e da pele, que Jesus nasceu e viveu. Foi no meio desse povo pobre, desconsiderado, espezinhado e esmifrado que, silencioso, Jesus viveu e trabalhou por quase trinta anos. E foi a esse povo que Jesus preferiu dirigir a palavra e impôs as mãos durante três anos. (De facto, em Jerusalém Ele apenas falou oito dias; os suficientes para que o levassem à morte!)
Era tanta a negrura que pairava sobre as vidas e as casas dos galileus que, quando Jesus muda de Nazaré para Cafarnaum, e começa a anunciar o Evangelho, logo as pessoas, recordando-se do que, há setecentos anos (!), havia dito o profeta Isaías (8:23ss), começaram a proclamar que sobre eles brilhava uma luz que lhes rasgava as trevas da noite, tal como quando, pela madrugada, o sol, desponta e atravessa os cumes dos montes mais altos.

4. Volvamos ao início: Por que escolheu Jesus a Galileia para, durante três anos, anunciar ali a notícia feliz? Por que assim quis; porque foi isso que lhe deu na real veneta, enfim, que outra razão não havia. Quisera e poderia tê-la ido dizer para outro lugar, mas não foi, não foi, pois Ele quis dizer o que tinha a dizer ali, ali mesmo, naquela desconsiderada terra escura, e sem luz, onde reinava a noite! Havia lugares mais lindos — oh, se havia! —  com belos e luminosos palácios, roupas lindas e perfumes caros. Claro que havia pessoas interessantes e interessadas em ouvi-lo. Mas o que Jesus tinha para dizer deveria ser dito aos descalços de pé rapado; e disse. E eles entenderam ao ponto de recordar palavras de há setecentos anos atrás:

5. «Eis que, para nós, aqui, uma luz se alevantou!».
A luz merece-a quem dela vive privado, os que vivem de pescoço vergado e de jugo pesado sobre os ombros, mirando, tão-só, no chão, o alargado risco da própria sombra. Eis que, ainda hoje, a luz melhor brilha nos lugares mais escuros e depressivos da humanidade. Que fizeste tu à candeia que recebeste no teu baptismo? Olha que ela não era para ti, mas para que iluminando tu os demais, por ela fosses tu iluminado.

Frei João Costa
.carmo | nº 225 | janeiro 22 2023