1. Do nascimento de Jesus não existe algum registo no civil ou certidão de batismo na Igreja. Nasceu Ele tão do lado de lá da história, que ninguém registou o principal de todos os nascimentos. Era tão pobre, tão pobre, que na escala social estava no degrau debaixo, o mais sem sol. Era da linhagem do grande rei David — mas quem olhando para o pai José, o carpinteiro, o adivinharia? Nasceu num buraco de animais perdido num monte, num daqueles covis em que até custa a crer que as alimárias ali parissem — quem o registaria? Nascesse Ele num palácio, filho duma família importante, viesse destinado a comandar, e alguém haveria de ter publicitado nos jornais, postado no Facebook e no Instagram, ou registado em plaquinhas de argila. Mas não, ninguém nada registou, ninguém nada escreveu, ninguém nada relatou. E para cúmulo, dizem que no parto santo José se adormilou; Maria, porém, ao revés, todas as notícias do Filho guardava no coração, e delas algo falou, mas não muito. Já isso é algo, mas pouco.
2. José e Maria, pais de Jesus, eram pobres, e amavam-se. Mais que tudo, eles amavam-se – amor, esse fabuloso motor da vida que derrete e derrota montanhas! José amava-a mais que a si mesmo, mesmo se a não compreendia inteiramente, nem compreendia porque no corpo da sua Mulher – e não de outra mais senhoril e mais encorpada, e com mais nome – acontecia o maior dos milagres: a gestação do Filho de Deus!
Vai lá tu compreender!… Explicassem-lhe a fé e a justiça por onde lhe explicassem, ele, o homem justo, não entendia, pronto; mas estava ali, ao pé da Mulher, para o que desse e viesse. Não, dali ele não arredaria pé. Não arredaria, não arredou, não arredará.
– Se ela é o que é, a ele lho deve também… –
Como sabemos nós, hoje, Maria e José eram pobres demais para que alguém se incomodasse com o seu menino nascido naquele buraco achado às pressas; pobres demais para que alguém escrevesse sobre eles ou sobre o recém-nascido.
Sim, é verdade que o Império sabia o que precisava de saber da vida de José; e ai dele, se não tratasse de para ali se deslocar para se recensear na terra da sua família! Ai dele, se andasse por aí a matraquilhar as ferramentas (que é donde os homens justos tiram o sustento para viver); ai dele, se girovagasse por aí sem prova de que pagava os impostos que a data só os homens casados pagavam (e ele era casado, e até ia ter um filho…)! Sim, o Império bem sabia tudo isso, mas não sabia de nada mais, porque o resto eram ninharias. E por isso nenhum escriba ou oficial nada registou. Para o Império o nascimento de um menino não contava para nada – talvez apenas daí a duas dezenas de anos, quando ele pudesse pegar em armas ou, casando, se obrigasse a pagar impostos. Não, o Império não sabia que o menino nascido no buraco era Deus, nem podia saber que ninguém lho dissera; e se dissesse ele não acreditaria, porque os deuses nascem no Olimpo, em templos ou em palácios, não em buracos. E ainda que aceitasse que pudesse nascer num buraco de um monte, para que queria o Império mais um deus, se já tinha tantos de que se ocupar? Que vinha cá fazer um mais? Que virtude ou que poder benfazejo acrescentaria à Humanidade um nascituro dado à luz na cova escura de um monte entre bichos? Sim, por que se haveria de aperceber do Santo Nascimento o poderoso Império dos deuses mais poderosos e avassaladores do momento? Não eram ele o vencedor, aquele que esmagava os ratos que se lhe opunham? Para que quereria o Império mais um deus – e para mais um de carne frágil e a depender da mama da Mãe? Um Deus de carne pobre em breve deve morrer – como poderão os dois pobres coitados cuidar de um Deus? Enfim, quem, pois, em boa verdade, se haveria de incomodar com o nascimento de Deus sucedido às escuras duma lura?
3. É sabido que os pastores não sabiam escrever. Contar, sim; porque é mais fácil contar ovelhas e cabras do que escrever-lhes contos! Logo, por que haveriam de ser eles a escrever algo sobre o nascimento do Deus tão esperado? E os primos dos pastores, igualmente pobres, também nada escreveram, pois também não sabiam o que dizer. E se soubessem, que escreveriam eles – que numa noite nascera um menino e fora saudado por Anjos? Escrevessem isso e não faltaria quem dissesse que o vinho da taberna do lugar andava a escoar demasiado depressa goelas abaixo…
Dois anos depois, José e Maria ainda se deixavam estar por Belém. A José iam apreciando-lhe o jeito para adoçar a madeira; a Maria, o asseio dos paninhos sempre esplendendo no estendal. E o Garoto? O Garoto era um garoto mais, um párvulo entre os tantos que em breve haveriam de ser da sua igualha nos banquinhos da sinagoga; era um de tantos que, como todos, abundantemente, repetidamente, havia sujado os paninhos como… como os demais, como todos – aliás, a maioria até haviam sido oferecidos por esta ou aquela condoída mãe, pobre como eles, já depois de terem servido para alimpar outros rabos de menino…
Não, ninguém reparou no rapaz, para além de que nascera rapaz, e mamara, tivera as maleitas típicas da infância (não recebeu vacinas, atenção…), sujara fraldas, começou a andarilhar pelos nove meses, botou os dentes e choramingou quando um ou outro mais teimoso lhe rasgou as gengivas, ah… e foi visitado pelos Sábios do Oriente. Bem, isso foi festival que ninguém pôde ignorar porque a caravana armou nos arrabaldes da cidade três formosíssimas tendas, fazendo-se notar por alguns dias! Mas assim como vieram, assim foram: numa inesperada noite, parecendo que a terra propositadamente os engolira, desapareceram; e depois desapareceram a Mãe, o pai e o Garoto! E o que ficou para trás foram boatos que rolavam da boca para o ouvido, como rolam pela poeira dos caminhos certas arbustos secos do deserto que se enovelam com o vento que os leva.
Não, em Belém nada ninguém escreveu sobre aquela família semi-sem-graça, nem sobre o filho que era Deus! E como seria Ele Deus, se era igual aos filhos das outras mulheres? Aliás, via-se bem que Maria era pobre demais para albergar um ventre digno de rei, quanto mais de Deus! E José, mais para o calado e macambúzio que para o tagarela ou basófias, com jeito para fazer um banco, mas mais propenso a sentar-se e a dormir no chão que a recostar-se numa cadeira, quem lhe daria crédito? Não, nem em Belém nem em Nazaré alguém lhes deu mais crédito que aquele que se empresta ao silêncio desconfiado.
4. É, pois, um pobre o que celebramos no Natal à roda da mesa farta e com hinos sagrados em torno ao altar. O Natal merece de ti, de nós, um silêncio respeitador e uma contemplação humilde que reconheçam e nos façam saber que o nascer pobre de Deus representa para nós a maior lição de vida!
Santo e feliz Natal!
Frei João Costa
.carmo | nº 261 | dezembro 24 2023