Ponto Carmo

E se aqui partisses a tua bilha?

1. Continuamos em plena Quaresma. Vamos já no terceiro domingo, a terceira etapa da nossa jornada penitencial rumo à Páscoa. E é em contexto penitencial que escutamos o Evangelho da Samaritana (João 4:5-42). Este relato é muito curioso, de uma densa tessitura que dá muito para meditar. Ora, se é para meditar, meditemos. Mas, primeiro, para algo se entender de tão fecundo e profundo trecho evangélico, talvez devamos atender ao seguinte: ao tempo de Jesus jamais era permitido a um homem dirigir em público a palavra a uma mulher, mesmo que fosse a própria.

2. Bem vistas as coisas, porém, o relato da Samaritana diz-nos que Jesus saltou olimpicamente tal preceito, pois, pelo menos uma vez falou, e falou longamente em público com uma mulher!
Para melhor se acolher o sentido do texto haver-se-á de considerar que aquele diálogo até nem foi um deslize de Jesus. Não, não foi! Aquele foi propositado e o mais extenso diálogo de Jesus jamais registado nos Evangelhos — ou seja, Jesus quis mesmo falar com aquela mulher, quis fazer-se entender por ela, quis fazer florir nela uma sede especial, até fazer dela uma proclamadora de tal sede! Mas há mais! Há mais, sim, porque Jesus não apenas falou em público com uma mulher: ardendo de sede, Ele esperou-a junto ao poço! Repare-se bem: O poço em Israel era o que até há bem pouco tempo eram para nós as fontes nas nossas aldeias: o lugar dos amores! Quantos ao longo da história de Israel não se apaixonaram junto ao poço? Imensos! Rebeca e Isaac; Jacob e Raquel; Moisés e Séfora…
Sim, no pino de um dia de calor, depois de uma longa andadura, também Jesus se achegou ao poço dos amores e, sem pejo nem rebuço, esperou e enamorou-se de nós — diz o relato, teve sede e pediu de beber a uma mulher!

3. Este texto de São João é deveras inquietante, pois Jesus é Deus, logo é do Seu divino coração que brota a voz de Deus quando, dirigindo-Se àquela mulher, lhe diz: — Dá-me de beber!
É óbvio que isto nos tem de inquietar porque, deste modo surpreendente, o Evangelista nos diz que Deus vive com sede, e com sede caminha e se cansa buscando-nos; porque enamorado de nós, Ele se atira ao caminho, buscando-nos debaixo do sol abrasador; mesmo sabendo-nos impróprios do Seu amor e devoção Ele espera por nós na doce fonte dos amores que não matam a sede!

4. É. É isso mesmo: Deus busca-nos, Deus procura-nos, Deus demanda-nos, Deus afadiga-se e cansa-se até nos achar; e achando o carreiro que nos traz às águas que não matam a sede, sereno e pacífico, ali Ele espera ainda por nós.
Essa é a verdade: Deus enamora-se de nós desde sempre, mesmo sabendo que não estaremos nunca à altura Dele — e é que nunca estaremos! E declara-se-nos antes que sejamos perfeitos — e é que nunca o seremos plenamente, ao menos como Ele é… Febril Deus morre de sede de nós — e não nos pressiona, espera-nos. Ele sabe que também nós temos sede; e sabe que, continuando nós a beber das águas dos amores imperfeitos, a nossa sede só aumentará! Por isso, sem pressa, Ele aguarda a nossa rendição — Quando te renderás?

5. Que não fazer poderá, pois, Aquele que de nós, desde sempre, vive sedento e enamorado, se não aguardar, aguardar e, pacientemente, morrer de amor, no lugar dos amores, onde Ele sabe que a sós nos poderá falar ao coração, até que, começando a ser ouvido, o nosso, inteiro, se Lhe renda, se Lhe entregue, se Lhe devote. Essa é, toda a sedução de Jesus: busca-nos incansavelmente e, amorosamente cansado e manso, nos espera como uma fonte que só se dá. E quando, por fim, de nós tem um vislumbre, quando nos entrevê a chegar de cântaro rachado, então, mete conversa connosco, declarando-nos que tem sede de nós, da nossa imperfeição, da nossa sede, da sede de ardentemente precisarmos Dele.
Assim é Deus: tem ciúmes ardentes, mas não nos amarra! Nem jamais dorme descansado, porque só pensa em nós; só pensa, mas sem nos prender ou encarcerar. Bem sabe que temos sede, mas é Ele que arde pela nossa imperfeita sede, até descobrirmos que Ele quer dar-se-nos sem nos afogar. E a nenhum esforço se poupará, em nenhum caminho se perderá, antes, sem vacilar, até à cruz caminhará para nos dizer: — Tenho sede! Continuo a ter sede de ti! Sede de te amar, mesmo sem por ti ser correspondido; sede de te salvar, mesmo que te julgues perdido para sempre; sede de beber da tua humanidade, delitos e pecados!

6. Tenho sede de beber-te!

7. Jesus tem uma sede que incendeia e encandila. Sede que lhe arde e requeima o coração, porque só anseia amar e ser amado! Tem sede dos nossos olhos, ainda que mintam; sede das nossas juras de amor, mesmo que façamos figas atrás das costas! Sim, Jesus tem sede e sabe jamais existir algures um amor que apague o Dele; por isso, a ninguém Ele pede um amor-perfeito, tão-só, que haja amor que O comece a ouvir, porque a água com água se paga, mesmo se choca! Tem é de haver sede…

8. Em cada hora e em cada tempo, desde há dois mil anos, a sede de Jesus atiça e acirra a nossa sede.  Mesmo que nunca passemos de água choca em cântaro rachado, Jesus dir-nos-á sempre: tenho sede, sede, sede, sede, de ti tenho sede; quando te renderás e me darás da tua água? Sim, a tua bilha é rachada e a sua água não presta, mas não, eu não te renego, não te aponto o dedo, não te deprecio, pois tenho sede da tua água! Só dessa tenho sede…
Sim, e por fim, uma e outra vez Jesus nos incita: e se tu mergulhasses em águas mais profundas? E se descobrisses a beleza escondida, por ti ainda desconhecida, do dom grátis que Deus tem para ti? E se aqui partisses a tua bilha?

Frei João Costa
.carmo | nº 232 | março 12 2023