Ponto Carmo

O Evangelho dos pobres

1. O Natal de 2023 trazia consigo a proposta duma efeméride redonda visto que naquele 25 de dezembro se celebravam os 800 anos da criação do presépio por São Francisco de Assis. A coisa passou-se, portanto, no Natal de 1223. São Boaventura (1221-1274), que à data só tinha dois anos, narra-nos o acontecimento da seguinte maneira: «Três anos antes da morte [São Francisco] resolveu celebrar com a maior solenidade possível a festa do Nascimento do Menino Jesus, ao pé da povoação de Greccio, a fim de estimular a devoção daquela gente. Mas para que um tal projeto não fosse tido por revolucionário, pediu para isso licença ao Sumo Pontífice, que lha concedeu.
Mandou preparar uma manjedoira com palha, e trazer um boi e um burrito. Convocaram-se muitos Irmãos; vieram inúmeras pessoas; pela floresta ressoaram cânticos alegres… Essa noite venerável revestiu-se de esplendor e solenidade, iluminada por uma infinidade de tochas a arder e ao som de cânticos harmoniosos.
O homem de Deus estava de pé diante do presépio, cheio de piedade, banhado em lágrimas e irradiante de alegria. O altar dessa missa foi a manjedoira.
Francisco, que era diácono, fez a proclamação do Evangelho. Em seguida dirigiu a palavra à assembleia, contando o nascimento do pobre Rei, a quem chamou, com ternura e devoção, o Menino de Belém. (…) O exemplo de Francisco correu mundo e ainda hoje consegue excitar à fé de Cristo muitos corações adormecidos».

2. O uso do vidro como suporte de arte é muito antigo, porém, o recurso ao vitral, colocando-o em janelas de dimensões variáveis só ocorreu a partir do séc. X. Ao início, apenas se aproveitava a oportunidade de deixar as janelas das grandes catedrais mais bonitas, mas prontamente os arquitectos repararam no óbvio: elas canalizavam luz e dissipavam abundantemente a escuridão do interior dos espaços! Ora, há que reconhecer, essa era uma bela oportunidade para destacar uma verdade espiritual, ao mesmo tempo que servia um propósito catequético: tal como a graça divina vence as trevas dos corações, assim as janelas rompem a escuridão dos templos – era de aproveitar.
A luz que pelas janelas atravessa paredes mostrou-se uma tão bela oportunidade de evangelização que, à medida que a tecnologia foi melhorando, os vitrais mais cresceram, ao ponto de se tornarem extremamente complexos, cheios de simbolismo, de boas notícias e de proclamação da Palavra de Deus.
Dependendo do tamanho da igreja as janelas eram maiores ou menores; mas foram-se mais ampliando à medida que as técnicas de construção o iam permitindo, e em razão disso os vitrais converteram-se em verdadeiros relatos catequéticos, viajando desde o Génesis ao Apocalipse, destacando, isso sim, com clareza, os momentos mais relevantes da História da Salvação.
Uma coisa é certa: a Igreja soube aproveitar a oportunidade arquitectónica de rasgar as grandes paredes para fazer das janelas um lugar de anúncio do Evangelho; ou seja: em plena Idade Média – e quem lhe chamou a idade das trevas? –, elas transformaram-se no principal veículo de luz e de educação dos fiéis leigos, a quem passaram a ser oferecidos os grandes relatos da História da Salvação como forma de lhes inspirar os passos do dia a dia.

3. Não, não é apenas de agora que o ensino dos pregadores se mostra frequentemente obscuro e impenetrável ao entendimento e ao coração do povo fiel. Logo fácil é de compreender que a luz e a beleza dos cristais felizmente se lhe impôs como uma reconfortante oportunidade de apre(e)nder a beleza das verdades que pela pregação lamentavelmente lhe escapavam! Veja-se: não percebia o povo simples o linguajar dos clérigos, nem compreendia os ritos em que emergia? Sim, isso sucedia (e agora sucede) com frequência. Que fazer, então? – Favorecer-se o desviar da atenção do púlpito (lugar da palavra) para fixá-lo no vitral (lugar da luz); ou melhor, desligava-se o sentido do ouvido e activava-se o da vista, visto que no vitral se ofereciam as grandes cenas bíblicas numa catequese luminosa e acessível ao olhar e à inteligência.
(Quem tiver a graça de visitar as grandes catedrais europeias – Burgos, Toledo, Siena, Orvieto, Friburg, Paris, Reims ou Chartes – compreenderá que é por esta razão que a estes belíssimos vitrais com propriedade se lhes chama «A Bíblia dos pobres», precisamente porque os pobres – e os iletrados… – passaram a aceder, através deles, com clareza, às verdades da fé cristã!)

4. Ora, se nos vitrais medievais reconhecemos a «Bíblia dos pobres», no presépio haveremos de reconhecer «O Evangelho dos pobres» – tal foi a surpreendente intuição de São Francisco! De facto – três anos antes de morrer – querendo celebrar mais que a Missa de Natal, disse: «Quero ver com os meus olhos como Deus fica deitado entre palhas, numa manjedoura, entre o boi e o burro»; e logo tratou de juntar pessoas que naquela Santa Noite, fria e também jubilosa, pela primeira vez representassem, nas montanhas do lugarejo de Greccio, o sagrado mistério do Nascimento de Deus.
Ardia Francisco de desejo de tocar e ver com seus próprios olhos como a longínqua grandeza de Deus se tornara tão vizinha de nós, num pequenino bebé! Sim, tal é o «Evangelho dos pobres» que nós adoramos e, louvando com piedosos hinos sagrados, agradecemos: Deus Todopoderoso deitado numa manjedoira! Numa manjedoira? Sim, é numa manjedoira toda desenculatrada que Deus se nos mostra tal qual Ele é; a saber: humilde, feito um de nós, carne da nossa carne, nascido frágil, dependente do leite de uma mãe, e da protecção de um pai, bebézinho perfeito, deitado em palhas frias, sem adornos nem insígnias, tremendo de frio, e posto entre um burro e um boi!
Deus entre um burro e um boi…

5. Sim, ei-l’O numa manjedoira, na cova de um monte!
Não, não, o nosso Salvador não nasceu numa fofa alcofa toda adornada de mimos, consolos e confortos! Ai não nasceu, não!

6. Sim, sempre contemplemos a manjedoira de Belém: ela é na terra o trono de Deus e Evangelho (boa nova!) verdadeiro a nossos corações!
Sim, contemplemos sempre o presépio com amor: naqueles in-cómodos está todo o Evangelho dos pobres que temos de aprender!
Sim, contemplemos, cantemos, e rezemos, que ali mora e geme a Luz que alumia as mais terríveis e duras noites escuras da Humanidade!
Sim, ali está tudo o que havemos de saber: a humildade que Deus tanto amou e só pela qual nos salvou!

7. (Parabéns, pois, a quem neste Natal, mais uma vez, pôs a brilhar em sua casa o Evangelho! Muito obrigado!)

Frei João Costa