1. Só lá muito no finzinho, já no fim da véspera de Natal, num cantinho da minha cela, também eu armo o presépio. A mãe está lá. O pai está lá. Ela tem lágrimas e lágrimas ele tem. E serena alegria também; esta orlada de lindas perlas caindo de seus olhos. O menino, Deus e carne da nossa carne, também está lá. Umas vezes, dormindo, outras, sorrindo. Outras, mamando nos peitos da mãe que, de quando em quando, também Lhe lala, o embala e lhe troca as fraldas. Tal é o meu presépio.
Há quem, a cada ano, lhe acrescente uma figura. Eu todos os anos lhas transmudo, não importa se meninos, se reis, se pastores, se judeus ou ateus, estrangeiro ou doutores. Virá quem vier. Aqui vão, pois, as figuras do meu presépio de 2024:
2. O ANJO VISITADOR
Todo o presépio tem pelo menos um anjo. Eu gosto de anjos, mas sem espada nem vinganças. Há uns cantores, outros trombeteiros, outros com turíbulos fumegantes, com harpas ou com partituras do Gloria in Excelsis Deo. Há uns amparando os passos de meninos a caminho da escola, outros velando-lhes o sono, outros tangendo baixinho violinos e sininhos.
Eu gosto muito de anjos colectores de lágrimas, com paninhos de linho branco nas mãos. Como tanto gosto destes, sim! Mas, depois da Pandemia conheci e aprendi a reconhecer, e a melhor apreciar, os anjos visitadores de sacrários. Há dias conheci um que me infundiu especial ternura. Já a escuras desoras ia eu fechando a igreja, quando, correndo, se me aprochegou um deles. Se eu podia esperar um minutinho que fosse, disse, para que entrando um instantinho na igreja, adorasse. Aí eu pensei que o minutinho solicitado, talvez pudesse durar tanto como o antigo e solene Minuto de Silêncio – esse tão nobre minuto que durava sempre entre os quinze e vinte! Sim, eu pensei isso e dispus-me à demora que, porém, a tanto não chegou, embora demorasse bem mais que o breve minuto.
À saída, discreto, já semi-fechada, eu guardava a porta; aí, ele adveio e disse-me:
– Muito obrigado, por ter esperado um minutinho!…
– Ómessa, lhe respondi, mais esperaria, se necessário. (E era verdade).
– É que é tão importante para mim, este minutinho…
Óbvio que eu imaginava que sim; mas sem mais nada dali pedir ou perceber. E aí, sem mais perguntar, disse-me o anjo:
– O senhor nem imagina! É que eu nem sempre posso ir à Missa. Muitas vezes falto aos domingos, porque a vida se me descompõe. Mas sempre que vou à igreja de Tal Parte, logo depois venho à Igreja do Carmo – a única que todos os dias sei aberta até tão tarde – para visitar Jesus que na comunhão antes docemente me visitou, entrando em meu coração, e sem eu merecer! Então, como lhe digo, padre, logo de seguida, faço-Lhe uma visitinha sempre curtinha, mas muito agradecida, de coração a coração, por Ele me ter visitado na comunhão! Muito obrigado pela sua simpatia, portanto!
– Muito obrigado eu pela lição, me repeti baixinho, só de mim para mim.
E não importa se apressado, se adorador, se calmo ou agitado, se correndo, se parado: no presépio deste ano vou colocar um Anjo Visitador com palavras mansas e abrasado coração adorador.
3. SENHORA DO OBRIGADO
Na realidade é mais que uma senhora, são várias. São todas velhotas, são todas do povo, todas humildes, todas gastas e todas pequeninas. Se as vir na rua não as reconhecerei a todas, na igreja, sim, sobretudo quando lhes dou a comunhão.
– O Corpo de Cristo, lhes digo.
– Amen, me retribuem.
E posta a confissão de fé, na mão lhes deponho Deus no Sacramento Alvíssimo que elas elevam à boca, logo comungam e depois se retiram.
Há, porém, uma senhora, ou um grupinho delas, mas cada uma em sua vez e em diferentes missas, que antes de comungarem, ainda me acrescem baixinho:
– Obrigado!
Ou, se mais não me conhecem:
– Obrigado, senhor Padre!
Sim, neste Natal eu vou colocar no presépio um obrigado em forma de sacrário e de senhoras velhinhas, piedosas e baixinhas. E cansadas.
4. AGOSTINHA
Também havia lavradas, mas a minha terra inclinava-se mais para as laboiras. Porque as conheci, fui e sou mais das laboiras, algumas delas rasgando leivas na terra com quatro juntas de bois ou mais! Uma laboira assim tinha de ter home que soubesse de guberno de gentes e alimárias, mesmo tendo em conta que quem chamava as outras juntas não era nunca burro nenhum!
E se no campo, o home comandava o exército das enxadas e charruas, na casa, a mulher comandava o forno, a lareira, as raparigas, os crianços, o exército das arcas, das panelas fumegantes, das pipas, jarros, infusas e pratos, e os pobres que sempre mais apareciam nas alturas de fartura a rezar pelas almas de quem Bocê lá tem.
Uma laboira, só para que se saiba, era algo quase tão sagrado como uma procissão de cardeais no Vaticano! E, repare-se bem: Vaticano há só um!
Pois, eu lembro-me bem desse tempo solene.
Lembro-me de ver a Agostinha e as filhas chegarem ao ajuntamento do pessoal com açafates à cabeça para, nas ceifas ou nas vindimas ou nas laboiras, abrirem os mantéis e nos matarem a fome. O que nos traziam nem era o mais importante. Antes sim, o modo alegre e abençoado como no-lo repartiam, dos mais velhos para os mais novos – essa era toda a nossa mais que justa recompensa. A mim, que à altura não passava de canalhico, bastava-me receber um pedaço grande de broa com uma rodela de salpicão, um casco de cebola e pimento vermelho curtido em vinagre!
A Senhora Gustinha tem agora 94 anos. Pode ser que se aguente, ouço dizer, mas para aquelas bandas o frio sempre teve galões de imprevisto general meio maneta – traiçoeiro, quero dizer. E pode ser que ela, entretanto, se vá. E se não, até pode alcançar o século. Já se verá. O que este ano se viu é que a essa mulher de laboira, robusta como um toiro, isto é, que extraordinariamente se sobrepunha a outras tantas mulheres extraordinárias, com um bando de filhos em volta do avental, que governava um galinheiro de duas dúzias de ovos ao dia, meia vara de porcos e uma quadrilha de arados, mai-lo o pessoal auxiliar, aquela mulher que sabia cantar as cantigas das ceifas, mai-las das vindimas e, ao domingo, fazer uma roda de namorados, moçoilas e rapazes novos, e pô-los todos a bailar, essa mulher que sabia vigiar a tradição, quando, sem falar alto, botava faladura, até os homes a escuitavam, essa mesma, sim, dessa mesma, a Gustinha, houve de saber-se no princípio deste ano que empequenecia no compasso dum só pestanejar. Sem demora, agarrada a um chamiço tosco de medronheiro, revelha e seca como uma raiz, assomou-se à Igreja de São Çupriano, como uma sombra, numa das raras vezes que o Padre Novo lá foi, para que ele le botasse a Unção Santa. E ele la botou, diz o povo, como le competia. Nem mais.
Desde esse dia, Gustinha deixou de cantar as nossas cantigas, de dizer os nossos ditos, contos, refrães e lendas, e já não bota cintenças. Dizem que alguma coisa ela deve ter visto ou sentido, ou pressentido, coisa que ninguém sabe e só alguns, poucos, como ela, entreveem. Agora passa calada o fio dos dias, das semanas e dos meses, talvez à espera do céu, quem sabe, e de cando em vez, lá vai cantando baixinho à Imaculada, como quem embala um menino:
Ó mais formosa *
que a linda rosa do meu jardim
no berço lindo, a luz sorrindo
branco jasmim.
Meu doce Jesus menino
de rosa, lírio mortal,
vinde nascer em minh’alma
possuí meu coração.
(*Cântico da Paróquia de Aboim da Nóbrega)
Frei João Costa
.Carmo_302 | dezembro 22, 2024