1. Depois de descer do monte, parou, Jesus, num sítio plano e pronunciou as Bem-aventuranças. Diante de si, bem perto do seu olhar, tinha, os seus discípulos – e dirigindo-se-lhes falou para eles, não há dúvida. E continuando no mesmo espaço plano – como que dizendo que para aceder à Sua palavra não haveríamos muito de trepar –dirige-nos, hoje, um discurso talvez ainda mais difícil de aceitar. Diz-nos: «amai aos vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam».
2. Mesmo se ouvidas da boca do Mestre terno, estas palavras ou dão vontade de fugir Dele (para não as ouvir) ou rasgar a página evangélica em que constam (para não termos de as ler).
Aliás, a bem dizer, Deus me perdoe, elas não parecem humanas. E não tivera Ele morrido às mãos de inimigos (e abandonado dos amigos); não tivera Ele morrido, perdoando, e seria de julgar que seriam impossíveis de cumprir por um humano. De facto, não parecem palavras humanas… porque o que nos soa como humano, é: cuida dos teus, protege a tua família, deita uma mão aos amigos. E aos inimigos não lhes poupes o mal. Estas sim, estas são palavras humanas; as que acima vão entre parêntesis, também o são, mas o coração que as pronunciou era divino!
3. Eu não posso nem imaginar o estupor com que estas palavras foram recebidas pelos seus discípulos. E ainda hoje demorarão anos a serem digeridas, assimiladas, percebidas, concretizadas. De facto, naquela hora, Jesus tinha diante de si a arraia miúda do seu tempo, a gente pobre, espezinhada, sofrendo o peso da bota dos ricos sobre o seu pescoço e a dura intolerância dos chefes religiosos. Como é que, dirigindo-se a pobres explorados, Jesus lhes diz: «amai aos vossos inimigos»? Como é que a quem tem fome, a quem os filhos lhes morrem sem migalhas, como que lhes diz que beijem e abracem a mão que vos esgana? Estando cara a cara com pobres, olhos nos olhos com eles, mirando-lhes o fundo das barrigas vazias, como é que àquela gente mais odiada por ser pobre, tida por maldita por ser ou parecer desgraciada de Deus, como é que Jesus lhes diz: amai, não odieis?
4. O assunto é mesmo esse: ainda hoje, mesmo depois de tanto ler ou ouvir esta página do Evangelho, qualquer mestre de qualquer parte do mundo, mesmo no país mais pacífico, continua a ensinar: odeia o teu inimigo, o que te prejudica, te fere ou faz algum mal. Ainda hoje, sim, essa é a lei, mas não para os discípulos de Jesus. E é que, sim, Jesus falava para os que O seguiam, e os seus: se quereis ser meus discípulos, amai a todos e a todos perdoai.
Essa é o ponto da questão: Jesus falava e fala para discípulos seus; não para discípulos de outro mestre qualquer; Ele não fora dirigir-se a alunos duma universidade de Atenas ou a cidadãos em alguma praça de Roma. Não; ele estava numa planície da Galileia, frente ao mar onde Pedro pescava. E a Pedro, aos colegas e vizinhos, e a outros tantos que haviam acorrido, a quantos se viam interpelados pelas suas palavras de luz, deixou-lhes mais estas que ainda hoje nos atravancam a garganta: se quereis ser meus, amai e perdoai a todos, inclusive a quem, se puder, vos mata!
5. Se quereis ser meus…
6. Uma coisa é certa, somos de quem seguimos: ou dos mestres que ensinam a matar; ou do Mestre que ensina a dar a vida. Não ser de ninguém, não entra na equação.
7. Isto para mim ajuda-me a tirar duas consequências, que aqui quero deixar: i) Todos somos feridos; todos nos apresentamos com cicatrizes diante dos outros. E Jesus sabia disso, que também Ele tinha cicatrizes na pele e na alma. O que quero dizer é que, talvez, até mesmo os meninos, por mais que os protejamos, tenham, desde cedo, as marcas da violência sarrabiscadas nas brancas páginas da sua alma! Não creio que alguém escape disso. E Jesus, é certo, que isso sabia; Ele não ignorava nem podia ignorar os rasgões que se viam nas mãos, nos pulsos e nos braços que tinha diante de si; só para ficarmos por aí. Por isso, quando nos manda amar e perdoar os inimigos e fazedores do mal aos outros, está a indicar-nos o único caminho da cura das feridas e das marcas da violência – o perdão; pois nenhum outro bálsamo apresenta eficácia maior. Só o reconhecimento de que o outro é também humano e filho de Deus, mesmo se violento e criminoso, nos pode curar das feridas por ele abertas no nosso corpo e na nossa alma. Mas mais: quem pode dizer que nunca feriu alguém? Quem nunca? Ora, pois: só quem se encontra ferido (e alguma vez feriu…) é quem mais bem pode perdoar o inimigo que fere. Creio, parece-me, que quem está em débito é quem melhor pode ser pagador e restaurador da paz e da saúde do irmão; e ii) Segunda (ousada) consequência deste mandamento de Jesus, que muito nos tem de fazer pensar: para mim, Jesus sabia outra coisa que tardamos em ignorar: só uma força existe que é mais forte que a da iniquidade do mal que mata: a bondade que dá saúde e vida!
Se a maldade atrofia, a bondade expande e alarga.
Se a maldade humilha, a bondade eleva.
Se a maldade trucida, a bondade sara.
A maldade mantém a iniquidade, a bondade é generosa, criadora e subversiva – muda as coisas.
8. Perdoar o mal que nos fazem e amar os inimigos só está ao alcance de Deus, e dos que em seu sacrário mais secreto guardam o gérmen da bondade divina. Perdoar é ser-se divino; não perdoar é negar o que de mais radical somos: iguais a Deus, porque seus filhos.
9. Pagar o mal com o mal, gera mais mal e só acrescenta mal ao mal – e a montanha em pouco tempo fica intransponível; a bondade do perdão cura. Eu conheço um desses profetas que aprendeu com Jesus; é dos dias de hoje e chama-se Brandt Jeane. É negro, e em inícios de outubro de 2019 tinha dezoito anos; um ano antes uma mulher polícia, branca, invadiu-lhe a casa, em Dallas, aos tiros e matou-lhe o irmão Botham. No dia da sentença Brandt disse ao tribunal que lhe perdoava a morte do irmão, porque era cristão. E pediu à Meritíssima que lhe deixasse abraçar a assassina que se lhe desfez em lágrimas nos seus bondosos negros braços.
Vão à net e vejam; e chorem… pois o perdão sara como mais nada.
Frei João Costa
.carmo | nº 311 | fevereiro 26 2025