Ponto Carmo

O pior cego sou eu

1. Às portas da Quaresma de 2025, cai-nos nas mãos e no coração de cada um e cada uma de nós esta página do Evangelho (Lucas 6:39-45), sobre a capacidade da falsa representação da nossa vida, o que leva Jesus a concluir que se dois cegos caminham juntos, um guiando o outro, então ambos cairão num buraco.
Mas poderia lá ser de outra maneira!

2. Na sua Mensagem para esta Quaresma, o Papa Francisco escreveu algo parecido a: para percorrer o caminho em conjunto – jamais como viajantes solitários – é necessário caminhar juntos, ser sinodal, porque esta é a vocação da Igreja.
Está dito, fica dito e recordado (ou por outras palavras): caminhemos juntos, mas não cegos, ou não seremos Igreja.

3. Pensemos um pouco: para quem, afinal, disse, Jesus, estas palavras? Segundo o evangelista Lucas, elas foram ditas, não para estranhos, nem para inimigos, mas para os seus discípulos, nada mais nada menos, os do seu círculo mais próximo, os apóstolos. E ali, na planície, como que a dizer-nos o Evangelista, (quase) no espaço do quotidiano, o que antes Jesus lhes disse (as bem-aventuranças e o amor aos inimigos, mais o que hoje lhes deixa), não é, penso eu, apenas palavra de Mestre divino – o que já não seria pouco –; mas, para além de palavra Sua, bem pode ser assumida como inteira palavra universal; palavra que se lhes, e nos, achega por caminhos longínquos, vindos de bem longe. É óbvio que a palavra de Jesus é maior que qualquer palavra, porém, não deixa de me espantar que qualquer uma daquelas frases ditas por Jesus, bem pode ser encontrada entre o musgo da sabedoria popular de tantos povos; anotemos, pois:

– O discípulo não é superior ao mestre.
– Todo o discípulo perfeito deverá ser como o mestre.
– Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista?
– E porque não reparas na trave que está na tua? 
– Não há árvore boa que dê mau fruto.
– Não há árvore má que dê bom fruto.
– Cada árvore conhece-se pelo seu fruto.
– O homem bom, do seu coração tira o bem.
– O homem mau, da sua maldade tira o mal.
– A boca fala do que transborda do coração.

4. Confesso a minha ignorância, mas uma coisa direi. Estas frases de Jesus parecem-me e té me sabem a provérbios milenares, daqueles que bem podem ter sido ditos em cavernas – ainda o fogo não tinha sido inventado; ou depois duma caçada, enquanto os homens da tribo assavam um antílope e, durante a espera, lá iam deitando contas à vida, concertando estratégias; e rematando: «o homem bom do seu coração tira o bem»! (Para se referirem, por exemplo, a quantos tinham colaborado no trabalho comum; enquanto, para dizerem aos mandriões, sempre ágeis a justificar-se, comentavam: já «o homem mau, da sua maldade tira o mal».

5. Estas palavras são de Jesus – óbvio; e divinas são, portanto! – mas por algo mais nos ficam no ouvido: é que elas falam-nos do nosso velho quotidiano.
A parcela de hoje começa por uma (sábia – mais uma!) advertência de Jesus: poderá um cego guiar outro cego? Não, não pode. É óbvio, e percebe-se bem o porquê: tarde ou cedo cairão ambos num buraco, e por lá se ficam. Ora, como diante de Jesus não havia mais que discípulos seus (seus amigos, seus escolhidos…), também é óbvio que a advertência era para eles! É para nós. Para quem mais?…
Sim, todo aquele que se constituir em guia, luz, mestre ou influencer da comunidade in-corre, segundo Jesus, na gravosa possibilidade, ou erro, de se julgar capacitado para ensinar – às vezes, dominar – os outros; pelo que há só uma maneira de o obviar: reconhecer mais as incapacidades do que as virtudes, parecer-se mais a Jesus que a si próprio!
De facto, é muito comum (ainda hoje) entre nós, também na Igreja, sermos afectados por tão triste cegueira: isto é, ainda hoje somos mais afeitos a denunciar e a castigar os erros e pecados alheios, a condenar severamente os outros, que a levarmo-nos a nós próprios a idêntico exame do mesmo tribunal.

6. A relação de autoridade na comunidade de Jesus é bem especial;por exemplo: foste já ou és guia na tua comunidade? Foste já ou és encarregado de corrigir quem te está confiado no teu grupo? Como o fazes: denuncias as falhas alheias à Inquisição ou, primeiro, submeteste-te a julgamento a ti mesmo e à tua consciência, quanto ao mal que te habita? Espias as faltas dos outros ou expias as tuas?
A comunidade cristã é uma comunidade de irmãos que caminham juntos – e como isso é difícil, meu Deus! Caminhar juntos implica ajudar-se; e o ajudar-se, pode chegar a ser sinónimo de corrigir-se – e se necessário, mutuamente.
Em sua sábia e douta perfeição, todo o discípulo pode ser um mestre para o seu irmão, mas mesmo se bem formado não passa nunca de discípulo, porque no caminho de Jesus;  e nunca o segundo suplanta o Primeiro, antes caminham juntos, bastando-lhe ser como o Mestre.
Sim, na comunidade de irmãos podemos corrigir-nos uns aos outros, sim, mas não como homens cegos e infantis, mais afeitos à vingança sobre o irmão que ao seu progresso. A maior exigência de Jesus impende, aliás, sobre quem está instalado no posto de mestre; se o és, nunca te atrevas a denunciar as fraquezas dos outros; nunca actues como quem humilha e, nem por sombras, tires disso proveito!
Tal modo de actuar não deveria ser jamais (e não o é) humano, muito menos cristão!

7. Por quatro vezes, nesta breve narração de hoje, São Lucas põe a palavra «irmão» na boca de Jesus. Porém, se repetidamente a usa é porque, primeiro, Ele fala para dentro da comunidade, por ser aqui, entre irmãos e irmãs, que mais nos ferimos, nos comemos, nos desprestigiamos, nos zangamos e dividimos.
Como quão cegos somos e mesquinhos! Como tão longe estamos de sermos perfeitos e verdadeiros, e não o sendo, quem quererá vir, hoje, viver e caminhar connosco? Sendo juízes tão agrestes e insolidários para com os outros, quem quererá comer dos nossos frutos?
Ah, Jesus, semeia bondade em meu coração, e lágrimas em meus olhos!

Frei João Costa
.carmo | nº 311 | março 02 2025