1. Segundo domingo, segundo passo da caminhada quaresmal de 2025.
De olhos na cruz – esse sinal maior que todos os dias sobre nós traçamos e nos faz recordar de Quem somos –, de olhos na cruz, dizia, precisamos de luz. É que a cruz é tão dolorosa… Depois de Jesus ter anunciado a proximidade da cruz aos discípulos, chamou três deles, os três mais antigos e mais amigos, subiu com eles a um monte e transfigurou-se diante deles. Esta fortíssima cena evangélica despoleta em mim algumas considerações.
2. O primeiro que, hoje, deveríamos recordar é que a cena da Transfiguração sucede depois de uma pergunta que se encontra no início do capítulo nove de São Lucas (o mesmo em que se narra esta cena tão sugestiva e relevante). Lembrar também que aquele mesmo capítulo regista que entre o povo, a pergunta que mais corre é: «quem é este homem?». E depois desta existe outra, em duas versões, e foi também feita pelo próprio Jesus aos apóstolos: «Quem dizem as pessoas que eu sou? Quem dizeis vós que eu sou?».
Mas reparemos: ainda antes de lhes ter feito tais perguntas, Jesus anunciara-lhes que morreria atrozmente, em Jerusalém. Convenhamos: àquela hora, os apóstolos só poderiam ter ficado completamente atolambados com tal assunto; porque quem, sozinho ou em bando, sobe a uma cidade para tomar o poder e aceita ouvir do seu chefe que ele apenas ali vai para morrer?! Não, em boa verdade, nenhum deles, nem nós, estaria, nem está, preparado para saber responder à pergunta sobre a verdadeira identidade do seu chefe, nem para ouvir, a ainda distante, mas já tamanha humilhação. (Não, jamais alguém, em hora alguma, está ou estará preparado para aceitar a humilhação, para fazer da perda um ganho, da cruz algo belo!)
Tal como nós, hoje, outrora, os primeiros estavam tão seguros de si que, seguramente, se viram sem chão diante da confissão de Jesus: subo a Jerusalém para morrer na cruz! Mas quem, em seu juízo, pode gostar da cruz? Ninguém. Mas haverá alguém que aprecie ser crucificado? Igual, ninguém.
Eis, pois, a razão porque o mistério, isto é, a realidade da Transfiguração é tão significativa. De facto, a Transfiguração fala-nos do lado de lá da morte, do glorioso e verdadeiro rosto de Jesus, o Filho de Deus.
3. Toda a Bíblia sabe que ninguém jamais viu a Deus. Ninguém. Ninguém mesmo, pois nem os apóstolos que com Jesus privaram reconheceram nele a Deus! Nem eles, nem ninguém. E a verdade é que o acontecimento trágico e ignominioso da sua Paixão e Morte jamais o ajudava a ver. O que, pois, me pergunto é: porque seguir alguém que nos diz que morrerá como um cão, na cruz? Que loucura – e tem de ser loucura, porque coragem não parece – impeliria os apóstolos na subida para Jerusalém? Não, não. Não foi o caminho da cruz que os animou a subir, não.
4. Anotemos também que a Transfiguração se deu no cimo do Tabor. Tabor é um monte, logo, ela não sucedeu nem nos dias nem nos espaços quotidianos, pois que Jesus tivera o cuidado de retirar os seus três amigos das andarilhanças do quotidiano e de os levar em retiro. E não em retiro qualquer, antes sim, no cimo de um monte – não num plano, num monte!
Não quer isto dizer que as transfigurações não possam suceder no lento rame-rame das horas normais da vida – que bem podem sim; e até podem transfigurar toda a realidade quotidiana –; antes quer dizer que Jesus sabe criar as condições necessárias para que a transfiguração (em nós) se dê.
E que, pois, para além de os retirar do quotidiano, mais fez Jesus? Fê-los subir; subir, não descer. Subir porque aparentemente Deus mais mora lá em cima no céu, e os cumes ou tocam o céu ou não são cumes. É por isso que Jesus sobe e os faz subir; isto é, fá-los sair e subir ao encontro de Deus. Graficamente é como se pudesse dizer que, uma vez no cume, se pode estender a mão e tocar na de Deus que estende a sua para nós. Registemos: a ascensão ao Tabor supõe, de facto, o efeito de proximidade e de toque em Deus. Estar ali é já estar com Deus, maxime se estamos em oração. E se era para rezar, ninguém rezava como Jesus, ninguém ensinava a rezar como Jesus, ninguém ajudava a estará com Deus como Jesus!
Por que razão admirar-nos que no cimo dum monte, estando com Jesus, e estando a rezar, aqueles três testemunharam o glorioso mistério da Transfiguração? Não; eu não me admiro nem me espanto; parece-me natural. E Jesus, também me parece, sabia antecipadamente que isso sucederia, pois Ele sabia como ninguém que os seus decepcionados discípulos precisavam que tal sucedesse. Aliás, para isso ali os levou Ele – para que o vissem glorioso. Dali a quarenta dias haveria Ele de morrer atrozmente, e morreu; Ele sabia-o e antecipara-lho com palavras que lhes entraram no coração como uma faca. Mas agora, no cimo do monte, consolava-os, mostrando-lhes a verdadeira verdade: Ele era Deus; a glória divina habitava-O em plenitude, e o Antigo Testamento, significado em Moisés e Elias, confirmava-o; e o Pai também o proclamava. Como duvidariam eles?
5. Naquela hora (em segundos?), no cimo do Tabor, reuniu-se o Antigo Testamento (Moisés e Elias) e o Novo (Pedro, Tiago e João); e Deus manifestou-se.
6. Não há, porém, Transfiguração sem dúvida e medo prévios; sem a dureza da subida, sem força da oração, sem ajuda da graça de Deus.
7. Foi, pois, contra o pesado luto da morte que se avizinhava, que no Tabor se manifestou a luz da glória, visível no rosto e vestes de Jesus que, fulgurantemente, a expandiram, sem que nós saibamos como ela se produziu. De facto, inteiramente não sabemos nem saberemos, nem jamais a veremos com os olhos da terra. E por isso eu creio, como diziam alguns dos santos primeiros da nossa fé, que na Transfiguração nada mudou em Jesus, antes, sim, nos apóstolos; que não foi Ele quem se encheu e transbordou de luz, mas que foram eles – a sua alma, o seu olhar… – quem se transfigurou, ao ponto de terem visto naquela hora (durante curtíssimos segundos?) o que jamais antes haviam visto durante três anos! Aliás, eu assim creio: em cada segundo, em cada respiração, Jesus sempre mostrara a sua glória; e não, nunca em seus dias (nem mesmo no Tabor) nada mudou em Jesus; mas sim, depois de orarem com Jesus naquele retiro no cimo do Tabor, mudou, sim, o olhar dos discípulos que testemunharam a glória divina de Jesus! Verdadeiramente, Ele é Deus!
Frei João Costa
.carmo | nº 314 | março 16 2025